Nildo Benedetti
Filmes da Netflix: ‘Jay’ da série "Criminal"
“Criminal” é uma série da Netflix que transcorre em quatro países diferentes Alemanha, Espanha, França e Reino Unido - e interpretada por atores locais. O cenário é sempre o mesmo: uma delegacia de polícia onde alguém está sendo interrogado. Cada episódio é uma média-metragem (40 minutos ou um pouco mais) e tem um enredo independente dos demais. E o mais importante é que a maior parte dos episódios possibilita uma discussão interessante sobre temas das Ciências Humanas.
Neste artigo tratarei do episódio 3 da primeira temporada, que tem por título ‘Jay’, que transcorre no Reino Unido. Penso que esse episódio adicione alguns elementos ao que escrevi na análise de ‘Inspire expire’ sobre migração. Para isso, serei obrigado a citar spoilers.
Jamaal Muthassin, apelidado ‘Jay”, é um motorista de caminhão que está sendo acusado de contrabandear imigrantes sírios para o Reino Unido. A polícia procura resgatar os imigrantes e, para tanto, deve arrancar de Jay a localização do veículo que ele abandonara ao saber que as autoridades o estavam perseguindo.
No livro “Retrotopia”, já citado nesta coluna, Zygmunt Bauman cita Michel Agier, o mais notável pesquisador da natureza e das consequências da migração em massa, que afirma que as estimativas correntes calculam em 1 bilhão de pessoas deslocadas nos próximos quarenta anos: “Depois da globalização de capitais, mercadorias e imagens, chegou afinal a hora da globalização da humanidade”, escreve Agier. Os deslocados, porém, são pessoas sem nenhum lugar que possa ser legitimamente reivindicado como seu. Essa é a condição de Jay na sociedade inglesa.
Mas, o que realmente interessa neste episódio de “Criminal” é a atuação da polícia com respeito aos imigrantes. Começarei citando um diálogo de entre Jay e o policial que o interroga: Jay:
“Precisava do dinheiro. Não vou mentir. Mas depois telefonaram-me (...)” Policial: “Quem?” Jay: “Têm um tipo na Alfândega. Um tipo lá dentro avisou-os e eles mandaram-me mensagem. Disseram: O teu caminhão foi sinalizado. Vão atrás de ti e mandar-te encostar.”
Neste diálogo fica claro a existência de uma rede de tráfico de imigrantes ilegais e que a Alfândega colabora com os traficantes. Contudo, a polícia não se interessa em saber quem são essas pessoas. Pelo contrário, quando o caminhão é encontrado e se descobre que na carroceria não havia sinais de ocupação humana, a funcionária da imigração que assiste ao interrogatório, diz uma frase que sintetiza a corrupção das autoridades:
“Vamos acusá-lo. A Alfândega vai ajudar com a redação. ‘Apoio no tráfico de substâncias ilegais‘ ou algo semelhante”.
A seguir, a chefe da delegacia, que encobre o fato de um policial ser alcoólatra, informa que vai adulterar as provas.
Essa investigação indecente, que mais parece uma peça teatral, é figurada no ensaio que inicia o episódio e que engana o espectador. E tudo isto se passa em um país em que a polícia já foi considerada modelo de honestidade e de eficácia e que o imaginário popular associava a Sherlock Holmes e aos detetives criados por Agtha Christie.
O gentil e enorme Jay, que tem mulher e filhos e precisa de dinheiro, é a peça insignificante de uma rede de traficantes que são blindados por autoridades oficiais. Ele é de longe a melhor pessoa do episódio.