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Nildo Benedetti

Filmes da Netflix: Inspire Expire (parte 5 de 5)

29 de Abril de 2022 às 00:01
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Adja (Babetida Sadjo) e o menino Eldar (Patrik Nökkvi Pétursson): o amor maternal e a solidariedade impregnam o feminismo de ‘Inspire Expire’.
Adja (Babetida Sadjo) e o menino Eldar (Patrik Nökkvi Pétursson): o amor maternal e a solidariedade impregnam o feminismo de ‘Inspire Expire’. (Crédito: DIVULGAÇÃO)

No livro “Retrotopia” já citado no artigo anterior, Zygmunt Bauman trata da migração. Afirma que os migrantes da era pós-colonial buscam por uma chance de construir uma vida mais digna nas economias domésticas dos colonizadores. E continua: “Ainda por cima, há um volume crescente de pessoas que são obrigadas a abandonar suas casas por causa de guerras civis, conflitos étnicos, religiosos e bandidagens não mitigadas nos territórios que os colonizadores deixaram para trás nos “Estados” (soberanos apenas no nome) artificialmente forjados e com poucas perspectivas de estabilidade; mas há também enormes arsenais bélicos de armas que procuram alvos fornecidos por seus antigos senhores coloniais. A desestabilização obviamente sem perspectivas da área do Oriente Médio, na esteira de políticas e aventuras militares mal calculadas, insanamente míopes e assumidamente abortivas das potências ocidentais, é o caso mais frequente, porém não o único dessa categoria. Na verdade, uma parte imensa da África o cinturão entre os dois trópicos de Câncer e Capricórnio foi transformada numa fábrica de refugiados em massa”. As condições físicas e psicológicas que estes emigrantes enfrentam para fugir clandestinamente de seus países guardam sinistra semelhança com a dos escravos africanos que eram transportados para as Américas.

Entre os policiais e funcionários, vemos homens e mulheres que se compadecem ou fingem se compadecer da condição dos imigrantes. Mas a maioria são indiferentes ao seu sofrimento. A própria Lára supõe que Adja queira fazer mal, ou mesmo raptar Eldar, para se vingar, porque foi ela quem detectou o passaporte falso de Adja. Penso que a detecção do passaporte tenha sido um ato impulsivo de Lára para se promover perante seu instrutor ou movido por indiferença pela sorte dos imigrantes. Mas, impulsionada por sentimento materno, não denuncia a filha e a irmã de Adja que conseguiram passar pela vistoria. Assim, o recrutamento de Lára como funcionária do aeroporto se deve à sua ação no episódio envolvendo Adja. E, como a parceira de Adja foi espancada até a morte por sua homossexualidade, a perigosa ação de Lára fez que Adja pudesse emigrar para o Canadá e, desse modo, salvar sua a vida e reencontrar a filha.

No filme, os homens não são melhores ou piores do que as mulheres. Seu feminismo não se reduz a retratar o homem como um machista a ser derrotado pela mulher, sua vítima. Essa visão simplista convém ao neoliberalismo, porque atiça a competição de gênero entre os 99% mais pobres da população. O filme ilustra a condição de mães solo encarregadas da reprodução social, ou seja, o suprimento da mão de obra necessária ao capitalismo. Essas mães lutam para criar os filhos decentemente e têm o seu real antagonista no sistema econômico e social de uma sociedade próspera como a islandesa. E a ação desse sistema pesa sobre todos, homens como os imigrantes e mulheres como Lára e as imigrantes, que não se dão conta das raízes mais profundas da sua própria condição: agem como os gatos a que nos referimos na semana passada.

A reprodução social une as duas mulheres por solidariedade mútua. É aí que “Inspire expire” se mostra essencialmente feminista nos moldes do “Feminismo para os 99%”, porque, como escrevem as autoras do livro, a reprodução social deve ser o palco das lutas feministas.

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