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Nildo Benedetti

Filmes da Netflix: ‘Inspire Expire’ (parte 4 de 5)

22 de Abril de 2022 às 00:01
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"Lára (Kristín Póra Haraldsdóttir) protagoniza a mulher miserável em uma sociedade próspera".
"Lára (Kristín Póra Haraldsdóttir) protagoniza a mulher miserável em uma sociedade próspera". (Crédito: DIVULGAÇÃO)

Feitas as considerações expostas nos três artigos anteriores, retomemos ao filme. Começarei citando um diálogo entre Lára e o filho Eldar sobre os gatos enjaulados:

Eldar: Por que eles ficam em jaulas? / Lára: Porque não têm ninguém para cuidar deles. / Eldar: eles não podem se cuidar sozinhos? Lára: Eles não podem fazer isso. Eldar: Por que não? Lára: Não sei. Alguém decidiu isso. Eldar: Quem? Lára: Querido, eu não sei. Eldar: É estranho ter que viver em uma jaula, você não acha?

Esse diálogo pode estar se referindo à condição das mulheres do filme ou das mulheres, de modo geral. Mas, creio mais lógico acreditar que a passagem se refira à condição dos 99% da população que não podem usufruir da liberdade e se conformam a essa situação porque não têm como sair dela. No livro “Retrotopia”, Zygmunt Bauman cita William Beveridge - economista britânico que foi membro do Parlamento do Reino Unido -, que sustenta que a liberdade individual é o valor supremo da ideologia liberal e que ela é impossível de ser usufruída se uma grande parte da sociedade vive sob o fardo da miséria, ignorância, necessidade, inatividade e doença.

Tanto Lára quanto Adja pertencem ao grupo de mulheres que as autoras de “Feminismo para os 99%” definem como pertencentes ao grupo de seres humanos mais pobres que se encarregam da reprodução social. Tratei do conceito de reprodução social na parte 2 desta série de artigos sobre ‘Inspire Expire’. A vida das mulheres nessas condições são como a de Lára, que enfrenta a vida como mãe sem dinheiro, que recorre às degustações de supermercados para sobreviver, tem crédito bancário limitado, inadimplente, que deve sustentar o filho de um pai inexistente. Embora tenha sido o país da Europa mais seriamente afetado pela crise de 2008, a Islândia tem a sétima renda per capita do mundo.

Lára luta para se afastar do passado de drogas e, suponho, de prostituição (parece que o local em que ela se dirige para solicitar abrigo seja um prostíbulo e talvez por isso o administrador lhe pergunta se conseguiu recuperar o filho que lhe havia sido tirado). Tem de fugir do apartamento em que reside porque não pode pagar o aluguel e passa a dormir no carro com o filho e depois no quarto em que Adja foi temporariamente instalada. Pensa em recorrer à mãe que está na Noruega, mas desiste, possivelmente por ter rompido com ela por causa de erros do passado. Quando Lára procura pelo filho que foi atrás do gato, liga para “emergência” para pedir ajuda da polícia, mas desiste. Penso que tema ser julgada mãe incompetente e que a guarda do filho lhe seja retirada. Ela parece viver em dois mundos: um, quando está com o filho: protetora, paciente, afetiva; e outro, o da dura realidade que enfrenta: sempre tensa, amedrontada e agitada.

Adja pertence à categoria das emigrantes. Pagando contrabandistas, emigrantes desesperados viajam clandestinamente em containers, em condições piores do que animais de abate, ou se afogam tentando chegar à Europa. Mulheres recrutadas em países da Europa Oriental são levadas aos países da Europa Ocidental com a promessa de se tornarem modelos e acabam sendo escravizadas como prostitutas. No submundo da migração ocorre tudo o que de mais abominável o ser humano pode realizar ou a se sujeitar.

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