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Leandro Karnal

O Jesus de Amélie

Mais do que uma heresia tradicional, Amélie nos faz pensar pelo fluxo de consciência na primeira pessoa, e, no caso, na consciência do próprio Cristo

17 de Abril de 2022 às 00:01
Cruzeiro do Sul [email protected]
Jesus Cristo
Jesus Cristo (Crédito: REPRODUÇÃO / INTERNET)

Leandro Karnal

A belga Amélie Nothomb (nascida em 1966) é autora fértil e surpreendente. Quando li o texto “Sede” (“Soif”, lançado aqui por Tusquets Editores), pensei em duas referências: “O Evangelho Segundo Jesus Cristo” (José Saramago) e a cena do “Grande Inquisidor “(dentro de “Os irmãos Karamazov”, de Dostoievski).

O Jesus de Saramago é um filho com problemas de identidade, sofredor e oprimido por um Pai onipotente. Tem medo da morte e deseja uma vida mais simples ao lado da amada Madalena. O Jesus russo é completamente silencioso, interage com olhares às reflexões densas e realistas do cardeal espanhol. O Jesus de Amélie é o mais humano que eu já encontrei. Não se trata apenas da tradicional linha de pensamento do arianismo (a escola teológica que nega a divindade de Jesus), todavia de uma aproximação entre o Salvador e a Humanidade em um grau muito intenso.

Como se fosse um novo evangelho apócrifo, sabemos muitas novidades pela autora. Exemplos? Jesus gostava de maçãs, apreciava o apetite voraz e tosco de Pedro, que seu pai adotivo José morreu ao cair de um telhado e que ele mesmo, o Redentor, pesava apenas 55 kg. Explicam-se passagens complexas dos Evangelhos oficiais (como amaldiçoar uma figueira que não dava frutos fora da época da fruta) e até a negação de palavras inscritas oficialmente na memória cristã como ele ter dito para a mãe, junto à cruz, que João era seu filho dali por diante.

Mais do que uma heresia tradicional, Amélie nos faz pensar pelo fluxo de consciência na primeira pessoa, e, no caso, na consciência do próprio Cristo.

O momento é dramático e adequado à Semana Santa. Jesus está preso e aguardando o suplício no Calvário. Ele relembra sua carreira, a relação com os pais, com Deus e o olhar sobre Judas, João, Madalena e Pedro. Maria, sua mãe, tem um retrato único. Não existe um drama barroco: sobrevivem as coisas simples e diretas na memória do condenado.

Como houve um julgamento antes, foram chamadas testemunhas, especialmente os agraciados com milagres. Nunca imaginaríamos: o casal para o qual ele produziu o primeiro milagre, nas bodas de Caná (grafada na tradução como Canaã), estar ressentido ao extremo. Gente livrada da cegueira não pode mais pedir esmolas e lamenta a cura. A mãe que teve o filho reanimado reclama que ele não fica mais imóvel e quieto como antes. Ali são feitas reflexões sobre a ingratidão, porém a autora vai mais longe e diz que “O problema do mal não é nada se comparado ao da mediocridade”. As pessoas não são, de fato, agressivas. Elas ignoram, são medíocres e se afogam mais no raso da mesquinharia do que nas profundezas satânicas da iniquidade.

O Evangelho segundo Amélie fala da consciência da Encarnação, dos prazeres que Jesus sente com o tato, olfato, paladar, sono e, especialmente, beber água. Ele veio ao mundo em uma terra quase toda desértica. Sede, nome do texto, serve para muitas reflexões sobre o prazer de beber água quando existe uma vontade intensa. No gole de água com sede estaria Deus, a mística, a consciência e todo o universo.

Deus Pai não é o velho birrento e autoritário de Saramago. É alguém com ambiguidades. Sobre os seres humanos por ele criados, o Filho comenta: “Meu pai criou uma espécie curiosa: ou são uns canalhas cheios de opiniões ou são almas generosas que não pensam”. Mesmo assim, o nazareno ama as pessoas de forma gratuita.

Amado por Madalena (com quem pensa em fugir para ter família e anonimato), feliz observador dos discípulos e suas variedades, melancólico com as pessoas em geral, curioso e inclinado ao Bem, o Messias do texto é profundamente solitário, mesmo tendo tido relações físicas com Madalena.

A sede é a chave da obra. Há a palavra saciedade para se opor à fome ou o termo descanso para o cansaço, porém, inexiste termo para expressar, de forma direta, que a sede foi aplacada.

Heterodoxias teológicas: o Inferno não existe. Existem aqueles que, mesmo mortos, continuam reclamando. O crítico permanente, aquele que só vê o prato que falta em um banquete, não será privado de sua paixão pela reclamação no momento de morrer. “Eles têm o direito de não aproveitar a sua morte”, sentencia o Jesus de Amélie.

Por fim, ressuscitado, o Jesus da obra parece outra pessoa. Sente luto apenas pela sede, já que a água não é mais necessária. É um Messias ressurreto que mantém a fé. “Crer só é belo no sentido absoluto do verbo. A fé é uma atitude e não um contrato. Não há alternativas a selecionar. Se conhecêssemos a natureza do risco no qual a fé consiste, esse impulso não passaria dos cálculos de probabilidades.”

Talvez eu tenha de trazer à memória um quarto Jesus. Não é o do ateu Saramago, da obra “Sede” ou do cristão atormentado russo. Trata-se do pequeno Jesus de Fernando Pessoa, o que chapinha nas poças e se diverte. Diz o poeta português que “Ele é o humano que é natural, Ele é o divino que sorri e que brinca. E por isso é que eu sei com toda a certeza que ele é o Menino Jesus verdadeiro...”. Bem, Pessoa concebeu o seu Jesus humano criança. Amélie Nothomb o coloca em meio ao suplício da Paixão. Ambos nos olham com ternura. Feliz Páscoa. Esperança na vida que segue!

Leandro Karnal é historiador, escritor, membro da Academia Paulista de Letras e autor de “A coragem da esperança”, entre outros