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Leandro Karnal

Memória magnética

Sei que há pessoas que exibem carros como fonte de afirmação. Há quem ostente joias, tapetes e até filhos. Eu ostentava ímãs de geladeira. Baratos, práticos, coloridos

14 de Abril de 2022 às 00:01
Cruzeiro do Sul [email protected]
(Crédito: REPRODUÇÃO / INTERNET)

 

Não sei como começou. Um dia, sem mais nem menos, minha geladeira tinha um ímã com uma lembrança de uma viagem. Era o soldado de vanguarda de uma imensa tropa. Passei a trazer mais a cada saída. Alguns eram fotos, outros tinham imagens curiosas esculpidas em resina, quase todos tinham a tendência à queda. De quando em vez, ao serem removidos para limpeza, notava-se que tinham se afeiçoado à superfície externa do meu eletrodoméstico. Deixavam marcas que obrigavam a mantê-los sempre ali para ocultar a marca.

Quando alguém vinha tomar água ou café na cozinha, eu tinha um pequeno ciclo de itinerários para mostrar. Era um audiovisual instantâneo. Havia até reproduções de quadros famosos. Uma galinha de Porto de Galinhas conversava, alegre, com um Galo de Barcelos, de Portugal. Internacional!

A imaginação de quem elaborava era uma fonte de água que irrigava o interesse dos donos de pequenas lojas e chovia na minha geladeira. Cheguei a brincar que era chegado o momento de comprar outra para ter mais lugar para os famosos ímãs. Eram alegres e quase todos me encantavam. Apenas a moça da limpeza olhava para aquela galeria em miniatura com certa raiva.

Sei que há pessoas que exibem carros como fonte de afirmação. Há quem ostente joias, tapetes e até filhos. Eu ostentava ímãs de geladeira. Baratos, práticos, coloridos: passaram a povoar algum canto da mala. Cada um tinha uma história. “Este eu comprei no aeroporto de Paro, no Butão.” “Ah, você já foi lá?”. Pronto, o ímã tinha dado o gancho para o pequeno-burguês discorrer sobre seu destino errante.

Quando foi a primeira vez à Europa, minha tia Dulce trouxe ingressos dos museus, folhas de árvores, fotos, notas fiscais e até colheres do avião. Colocou tudo em um álbum tridimensional como peça de memória do evento. Eu nunca guardei um ticket, todavia, era dono de uma sólida coleção de ímãs de geladeira. Orientava quem viajava comigo: “A tendência são estes, compre!”

Como explicar o que vem e vai? Um dia me mudei. O novo apartamento teria uma vistosa e vasta geladeira de porta dupla, suficiente para muitas milhas de aventuras. De repente, não mais que de repente, todos os ímãs foram doados à pessoa que mais os odiara pela necessidade de limpeza. Talvez funcionassem como currículo: quando somos jovens, colocamos tudo, mais velhos, eliminamos a maioria das memórias. Hoje, quando entro em uma cozinha e vejo aquela porta de metal coberta de imagens magnéticas, penso: novo-rico! Por que detestamos quem fomos?

Leandro Karnal é historiador, escritor, membro da Academia Paulista de Letras e autor de “A coragem da esperança”, entre outros