Leandro Karnal
A política das aranhas
Refazei o saco, amigas minhas, refazei o saco, até que Ulisses, cansado de dar às pernas, venha tomar entre nós o lugar que lhe cabe. Ulisses é a sapiência
Leandro Karnal
A velhice de quem não lê será solitária, profetizava uma aluna minha entusiasta dos livros. Sim, ler é uma imensa e generosa companhia. Pensei ainda mais na frase quando ouvi um conto de Machado de Assis: “A Sereníssima República”. Sim minha querida leitora intrigada e meu estimado leitor com dúvidas: ouvi, porque estava na narrativa de um site de audiolivros que eu assino e acompanho com fones ao andar ou correr. Também uso livros narrados quando meus olhos, cansados como no poema da pedra de Drummond, não aguentam mais as letras cada vez menores. Porém, gostei tanto do que ouvi, que busquei reler, na minha edição das obras completas de Machado, o conto. Está na coletânea “Papéis avulsos”, a mesma que contém “O alienista”, “Teoria do medalhão” e o intrigante “O espelho”. Se cada brasileiro lesse bem um conto de Machado por semana, este seria um país muito melhor.
Volto ao conto ouvido/lido. Um cônego chamado Vargas profere uma palestra sobre uma intrigante descoberta. Após minuciosa observação, descobriu-se capaz de entender a língua das aranhas. Prossegue a imaginação do Bruxo do Cosme Velho: o religioso deu aos insetos uma constituição política. O modelo? A República de Veneza, sempre conhecida como Sereníssima, daí o título da obra.
Da República do Adriático, ele tomou o sorteio de cargos como modelo. Como na Atenas Clássica, o sorteio veneziano era muito frequente para preencher funções públicas. Para tal fim, aranhas hábeis fizeram um saco bem tecido. Os nomes seriam introduzidos e de lá sairiam magistrados e senadores. Aí começou o drama.
Algumas aranhas eram inclinadas à corrupção. Aumentavam ou diminuíam a boca do dito saco, mudavam a grafia de nomes, alteravam as regras tão sábias dadas pelo cônego, tomado por elas como um deus das aranhas. Surgiram grupamentos políticos na nova sociedade: o Partido Curvilíneo, o Retilíneo, um partido de centro (expressão de Machado) conhecido como Reto-Curvilíneo e, por fim, o negador de tudo, o partido Anti-Reto-Curvilíneo, que se limitava a ‘negar tudo‘.
As leis eram boas, porém as aranhas políticas faziam mudanças de acordo com o momento. As regras eram torcidas para atender a impulsos inconfessáveis. Em frase lapidar, nosso gênio literário diz que “Infelizmente, senhores, o comentário da lei é a eterna malícia”. O que significaria a ideia?
A República é uma boa instituição e as leis são claras. O sorteio elimina compadrios e deixa ao acaso (geralmente muito sábio) a tarefa de preencher cargos cobiçados. Elimina-se o nepotismo, vício recorrente de sistemas de poder. Porém... por serem cobiçados, os postos são alvo de, digamos, interpretações. Na chamada “hermenêutica jurídica” (juro, será o único termo difícil de hoje), ocorre a mudança da intenção da lei. Interpretar é fundamental para teólogos que se debruçam sobre o texto sagrado ou para advogados e juízes com a constituição aberta a sua frente. Existe um Deus ou uma Assembleia Constituinte que falou ali, todavia, há princípios, metáforas e intenções. Necessita-se da chamada hermenêutica na busca do sentido exato de cada termo dentro da narrativa. Aí, surge a malícia...
As aranhas personificam, claro, a situação política do Império. Os sistemas, por mais elevados que sejam, convivem com seus executores humanos e subjetivos. A excelência da receita culinária depende da leitura de cada cozinheiro/a, no que se deseja com aquele prato e das possibilidades materiais da despensa com ingredientes. O real e o ideal são ilhas isoladas pelo oceano dos comentários, das interpretações, ou seja, da já citada hermenêutica. Toda criança e todo aluno aprendem desde logo: hermenêutica serve para torcer diretrizes...
Machado encerra o conto dizendo que havia de refazer o saco de sorteios constantemente. Recomendava, como modelo, a famosa rainha de Ítaca, Penélope. Ela tecia uma peça incessantemente, escapando de pretendentes e aguardando seu marido Ulisses por longos 20 anos. “Refazei o saco, amigas minhas, refazei o saco, até que Ulisses, cansado de dar às pernas, venha tomar entre nós o lugar que lhe cabe. Ulisses é a sapiência.”
Bizarra a sociedade aracnídea! Machado louvou que eram diligentes, esforçadas, trabalhadoras incansáveis. Compara-as ao cão, ao gato e ao mosquito e afirma que, ao contrário das fiandeiras, tais seres “são o modelo acabado da vadiação e do parasitismo”. A aranha não nos “aflige nem defrauda; apanha as moscas, nossas inimigas, fia, tece, trabalha e morre”. Bem, mesmo tais seres laboriosos ainda podem ser alvo de interesses pessoais envenenadores da isenção aleatória dos sorteios. Nem as aranhas...
Se as tecedeiras incansáveis, melhores do que nós e do que os mosquitos, erram, imagine cada um de nós, muito menos aplicado ao esforço pessoal como redenção de vida. O conselho dado às aranhas é válido: vamos adaptando o saco de sorteios até que Ulisses volte e restaure a ordem na Ítaca-teia-Brasil. Quem será o desejado rei? Se os quatro partidos divergiam na narrativa do Cônego Vargas, imaginem-se cerca de 33 partidos no Brasil? Ah, Ulisses é a nossa esperança...
Leandro Karnal é historiador, escritor, membro da Academia Paulista de Letras e autor de “A coragem da esperança”, entre outros