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Marcelo Augusto Paiva Pereira

Restauração de bens culturais e seus doutrinadores

As cidades têm temporalidades diversas e concomitantes e requalificá-las sem estudo histórico nem juízo crítico causará a falsa identidade temporal delas em prejuízo da memória do grupo

25 de Fevereiro de 2022 às 00:01
Cruzeiro do Sul [email protected]
Marcelo Augusto Paiva Pereira.
Marcelo Augusto Paiva Pereira. (Crédito: Arquivo Pessoal )

Marcelo Augusto Paiva Pereira

A restauração de bens culturais resulta de exame crítico da obra a ser requalificada para dar nova destinação (uso), resgatar a identidade temporal e prolongar sua simbologia na cultura do grupo social.

As razões da restauração são científicas (transmitem o conhecimento a várias áreas), éticas (suporte da memória) e culturais (valor estético, documental ou histórico e memorial ou simbólico).

Necessário o estudo histórico para escolher a obra a ser restaurada em razão de seu valor histórico e função antropológica. O valor histórico alude à memória da sociedade e ao período que representa, enquanto a função antropológica alude ao resgate da identidade cultural que caracteriza a sociedade. São elementos intrínsecos a ela, que a identificam como temporalidade e monumento.

É temporalidade por ser bem cultural passageiro, tempestivo, sua época e finalidade se foram e carrega as marcas do tempo de existência. É monumento porque se constitui da temporalidade e da função antropológica, congela o período (ou fato) que representa para preservar a continuidade da memória do grupo social.

Quanto à simbologia -- ou valor simbólico -- da obra, é elemento de representatividade, tem cunho subjetivo e é componente da memória do grupo social. Tem causa no signo, símbolo e significado, é fonte da referência e da tradição.

O signo é a obra, o símbolo é o signo com valoração (importância dada a ela) e o significado é o efeito do símbolo no grupo social. A referência (representatividade da obra) é o modelo constituído, pelo grupo social, do signo ou símbolo.

A tradição tem natureza memorial porque faz prolongar o valor simbólico da obra ao longo do tempo e manter viva a memória do grupo social.

A memória é um processo psicológico que valora trechos do passado trazidos ao presente; ela não se manifesta sempre do mesmo modo, porque depende da valoração dada a cada trecho do passado. São lembranças que, comuns a todos (ou à maioria), formam a memória do grupo social. É valorativa, seletiva e fato social.

Recupera fatos e experiências passadas apoiada nos objetos do cotidiano; faz elo entre passado e presente, estabelece a relação entre causa e efeito e projeta a imagem do futuro. O objeto da memória é a mudança. Sua qualidade íntima pode ser atingida por qualquer alteração do ambiente.

Neste contexto, a memória da cidade tem suporte na monumentalidade articulada em torno de marcos usuais (referências) e da memória cotidiana, vivida nos percursos de ruas e praças.

As cidades têm temporalidades diversas e concomitantes e requalificá-las sem estudo histórico nem juízo crítico causará a falsa identidade temporal delas em prejuízo da memória do grupo social.

Em suma, a restauração de bens culturais tem o escopo de requalificar a obra, dar nova destinação (uso) e preservar a memória do grupo social e da cidade, sem causar modificação ou perda da autenticidade da obra restaurada. Seus doutrinadores serão abordados nos próximos artigos. Nada a mais.

Marcelo Augusto Paiva Pereira é arquiteto e urbanista