Vanderlei Testa
A fantasia do terno de saco de estopa
Ele ficou tão conhecido que só perdia em fama para "o prato arroz com feijão". Foram 10 anos seguidos ganhando o primeiro lugar nos concursos de fantasias

Vanderlei Testa
A homenagem em vida que escrevi ao carnavalesco Milton Tebet estava pronta e programada para hoje, dia 22 de fevereiro. Na manhã do dia 23 de janeiro chegou a notícia da partida do Milton à eternidade. Com a saudade do maior folião da cidade, chegou o dia do artigo do Milton que agora pode “ler no céu”.
O carnaval de Sorocaba tem muitas histórias pitorescas. Aquelas que estão impregnadas de confetes e serpentinas, lança-perfume, fantasias e clubes da cidade. Os personagens do carnaval sorocabano jamais esquecem os seus momentos. As novas gerações nem imaginam como o “sangue corria nas artérias dos carnavalescos”. Pura emoção e entrega do corpo nos quatro dias de folia. Resgatando essa época, o presidente do Sorocaba Clube, Benedito Maciel de Oliveira Junior, e sua diretoria estão organizando uma exposição das fantasias e dos troféus recebidos pelo saudoso Milton Tebet. Ele foi responsável pela continuidade do carnaval na história de Sorocaba. As fantasias e os troféus conquistados desde 1965 pelo Milton estão guardados na biblioteca infantil da cidade, numa iniciativa de José Rubens Incao, que é um dos historiadores que preserva a identidade cultural sorocabana.
A primeira fantasia do Milton Tebet foi um terno produzido por alfaiate da rua Mascarenhas Camelo, em tecido produzido de oito sacos de estopa, usados para acondicionar batatas. Uma ousadia a ideia do carnavalesco, que possuía um açougue. Como ele gostava de carnaval, ao ver a sacaria de produtos que sobrava no seu comércio, perguntou ao profissional da tesoura se havia alguma possibilidade de produzir uma vestimenta completa masculina, no caso, o terno. Era um desafio devido à abertura dos fios do tecido e manuseio nas costuras em sua máquina Singer. Mas aceitou o pedido do Milton Tebet. Sem contar nada a ninguém, no dia da abertura do carnaval, todo elegante com o terno de sacaria de estopa, foi participar de um concurso de fantasia no Ginásio de Esportes Gualberto Moreira. Um começo de desfile que não parou até anos depois, no dia do falecimento da sua mãe. Nunca mais desfilou com as suas inovadoras roupas coloridas em alta costura.
Abro um parêntese para contar que em 1965 havia no Sorocaba Clube, Clube União Recreativo e outros da cidade, noitadas de carnaval com animação de bandas famosas no Brasil. Participei de carnavais nesses clubes e assisti às inovações das fantasias do Milton. Um dia, o Milton começou o seu desfile pelas ruas centrais, desde a praça Frei Baraúna, que concentrava as escolas de samba. Ele desceu a rua de São Bento lotada de pessoas que iram assistir à passagem dos carnavalescos. Na frente do Sorocaba Clube havia um palanque com autoridades que assistiriam as escolas desfilarem. Todo garboso com a sua fantasia, Milton foi ovacionado com palmas e confetes até as escadarias do clube e ao interior do salão de danças. A orquestra parou de tocar para apresentar o Milton e sua fantasia. Ele fez dessa primeira noite da elegante fantasia, um marco de vida que contaria os detalhes no projeto Memória do Sorocaba Clube.
No dia 22 de janeiro seria realizado o baile Fantasia e aberta a exposição das fantasias do carnaval. Com o aumento dos casos do Covid-19 em Sorocaba, a diretoria, presidida por Benedito Maciel, decidiu cancelar os bailes carnavalescos e a exposição. No dia seguinte, Milton faleceu.
Nos quase 100 anos do Sorocaba Clube, Maciel enfatiza que o Milton Tebet é uma legenda viva do carnaval da cidade. Teófilo Negrão, diretor-secretário do clube, destaca que o Milton era esperado nos bailes de carnaval, pois todos os foliões queriam saber qual seria a fantasia do ano. Segundo o Milton, ele ficou tão conhecido que só perdia em fama para “o prato arroz com feijão”. Foram 10 anos seguidos ganhando o primeiro lugar nos concursos de fantasias de carnaval, que estarão na mostra do clube. Antonio Eduardo Prado relatou que o Milton sempre estava de blazer brilhante, cartola e bengala. Ele ia de mesa em mesa nos bailes, animando os casais. Renato Escamez o considera uma lenda viva em Sorocaba. Carlos Cesar Zuliani lembra que onde participava de carnaval, lá estava o Milton com as suas fantasias elegantes. Antonio Tabajara admirava o Milton pela ousadia nas fantasias.
Em Sorocaba existe tradição nos carnavais. Está na memória o bloco Amigos do Quilombinho, quando saiam da rua Caramuru. A Escola de Samba 28 de Setembro ia ao sambódromo do Parque das Águas e se juntava com outras nove escolas para as folias do carnaval. Tudo isso teve o seu ponto alto em 2017, sem que ninguém imaginasse que haveria em 2020 uma pandemia cancelando a maior festa popular do Brasil. Foi também em 2017 que a largada do carnaval com trio elétrico fazia o maior barulho de alegria com o bloco “Depois a Gente se Vira”. Faço questão de registrar essa iniciativa do pessoal carnavalesco de Sorocaba que homenageou o historiador Adolfo Frioli. A largada na avenida Dr. Eugênio Salerno, em frente a um bar que organizou o evento, foi considerada a 31ª saída do bloco das últimas três décadas.
A indecisão do carnaval de 2022 no Brasil ganhou respaldo das autoridades em transferir os desfiles. Além da pandemia do Covid-19, a da gripe veio somar às argumentações do cancelamento da festa. Com certeza, vão sobrar nas lojas especializadas, fantasias, confetes e serpentinas. A tradicional máscara de personalidades, em que os foliões mostram o seu rosto coberto por figuras de sucesso, também devem ficar nas prateleiras. Os rostos conhecidos dos políticos sempre são os mais procurados. Conta-se que o uso de máscara tem origem na Itália. Quando eu fui a Veneza, trouxe a minha como recordação. Segundo dizem os historiadores, a nobreza usava a máscara para esconder a sua identidade. Enfim, é carnaval no calendário, e mesmo sem desfile e bailes por aqui, certamente o Milton Tebet estará nas lembranças dos foliões.
Vanderlei Testa ([email protected]) é jornalista e publicitário. Escreve às terças-feiras no jornal Cruzeiro do Sul