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Edgard Steffen

Vestir a camisa

Vestir a camisa é expressão idiomática aplicável às empresas, aos grupos governamentais, políticos, sociais

08 de Janeiro de 2022 às 00:27
Cruzeiro do Sul [email protected]
Dos displicentes dizemos
Dos displicentes dizemos "não vestiu a camisa" (Crédito: REPRODUÇÃO / INTERNET)

Edgard Steffen

Iniciada a 52ª Copa São Paulo de Futebol Júnior
(Do noticiário esportivo)

A Copinha São Paulo é grande vitrine de candidatos ao profissionalismo. Jovens chegam dos mais variados rincões em busca do sonho. Alguns parecem assustados com a importância da oportunidade, enquanto outros dão um tapa no visual, usam penteados esquisitos e ensaiam dancinhas ridículas para chamar atenção dos caça-talentos.

Como parece boa essa carreira de jogador profissional! Fazer o que se gosta e ainda ganhar para isso! Você moureja num torno ou num balcão, na direção de veículo coletivo ou de carga, na sala de aulas ou no batucar dos teclados, num consultório de convênio ou do SUS etc. Talvez esteja entre os que expõe vida e saúde num hospital ou nas rondas da segurança pública. Compõe uma legião de heróis anônimos, por um punhadinho de reais. Pensou -- que delícia! -- se as peladas dos fins de semana fossem pagas em dólares ou euros!?

Conto de fadas narra a história de um rei muito infeliz que mandou chamar um mago para curar sua depressão. Nos dias atuais, essa história seria contada assim: chamaria um psiquiatra para prescrever os ansiolíticos da moda e iniciar longa sequência de sessões de análise. Com certeza a felicidade, expressa em honorários, viria... para o analista.

Retornemos à carochinha. Para ser feliz, o monarca precisava vestir a camisa de um súdito feliz. Assessores percorrem o reino. Por mais que procurem, não encontram um homem alegre. (Se acreditasse em bruxarias, poderia até pensar num país que todos conhecemos). Quase desistiam quando, de humilde cabana, ouvem cânticos entremeados de risos. Tal comportamento só poderia vir de alguém feliz. Apresentam-se e oferecem moedas de ouro por uma de suas camisas. Aturdidos constatam que o ditoso cidadão, de tão pobre, não possuía camisa.

Duas lições podem ser tiradas dessa estória. O tal reino não tinha sorte com a realeza. Sucessivas dinastias fizeram que o cetro real fosse empunhado por tiranos, contumazes ladrões e destrambelhados. Sem mencionar demagogos que desorganizaram o tecido social com falsas promessas de mudança. Mudaram para continuar tudo na mesma. A outra lição: na mais absoluta pobreza, há quem possa estar feliz. O ruim é que esse contentamento poliânico tolera nepotismo, impostos escorchantes, juros altos, falta de habitação, mau funcionamento dos sistemas de justiça, saúde, educação, segurança. Enfim, as mazelas todas. O povo ainda consegue rir de alegria. Quando assiste futebol, por exemplo.

Se o homem feliz jogasse no hipotético Real F.C. teria a camisa do time para vestir. Ao marcar um gol, talvez beijasse o uniforme com o distintivo. Não me lembro de ter visto Nestor, Picolé ou Paraná -- guerreiros daquele espetacular time do São Bento de 1963 -- praticarem tal gesto. Pelé também não. Nem beijos no escudo nem dancinhas ridículas. Comemorava os gols num elegante e vibrante salto com o braço direito em riste e punho fechado. Sócrates, por sua vez, levantava o braço esquerdo numa confissão política emoldurando o feito. Além das coreografias de gosto duvidoso, muitos candidatos a craque costumam beijar o símbolo impresso na camisa, numa exagerada prova de amor ao clube. Difícil é acreditar num amor tão volúvel.

Vestir a camisa é um dos primeiros atos, filmados e televisados com grande efeito de marketing e merchandising, na apresentação de jogador novo.

Dos displicentes dizemos “não vestiu a camisa”. Vestir a camisa é expressão idiomática aplicável às empresas, aos grupos governamentais, políticos, sociais, sindicais, filantrópicos, religiosos... enfim, onde exista gente congregada em torno de objetivo comum. Os omissos e pouco ativos talvez pensem que, para ser feliz, basta não usar camisa. Não valem futevolistas, banhistas nem surfistas amadores.

Chegou o ano de elegermos e exigirmos que os eleitos vistam a camisa do imenso time chamado Brasil.

Edgard Steffen ([email protected]) é médico, escritor e membro da Academia Sorocabana de Letras (ASL)