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Olhe para dentro

Artigo escrito por Alexandre Garcia

30 de Dezembro de 2021 às 00:01
(Crédito: REPRODUÇÃO / INTERNET)

Estimulado pelos que viram, também tratei de assistir ao “Don’t look up”, na Netflix. Um filme que virou o último assunto político do ano, com opiniões opostas vendo a obra como uma crítica ao outro lado. Pois é uma sátira que mexe com todos, com o que expomos, na pandemia, na disputa eleitoral e em outras controvérsias, não apenas nos Estados Unidos, mas também por aqui -- como revelamos nas polêmicas em torno da obra nas redes sociais. Vejo muita semelhança -- e até alguma inspiração -- com outra sátira, de outro período, o da Guerra Fria, feita por Stanley Kubrick, com Peter Sellers fazendo três personagens: “Doctor Strangelove ou como deixei de me preocupar e aprendi a amar a bomba”.

Na sátira de 1964 e na de hoje, estão retratados a presidência dos Estados Unidos, a ciência, radicalismos, militares; em ambos os filmes, o fim é trágico para a humanidade. Ambos são tragicomédias, pois o ridículo dos personagens os expõe ao riso. Na comédia da Roma antiga, ridendo castigat à critica-se rindo dos que querem nos conduzir. Em ambos os filmes, elencos reforçam o roteiro. Em “Doctor Strangelove”, além de Peter Sellers, George C. Scott e Sterling Hayden. Em “Não olhe para cima”, Meryl Streep, como presidente dos Estados Unidos, Cate Blanchett, como bela e fútil apresentadora de TV, Leonardo Di Caprio, o astrônomo que calculou o impacto do cometa na Terra e Jennifer Lawrence, a estagiária que descobriu o cometa.

Um pesquisador médico amigo meu se sentiu retratado no filme com a estagiária. Imagino o quanto se sentiu retratado quando o FBI sequestra e cobre com capuz os cientistas que insistiam na tese do choque com a terra. Equivale às censuras reais contra quem traz teses diferentes dos dogmas adotados. O filme satiriza o feminismo, retratando uma presidente com defeitos iguais aos piores demagogos; faz o mesmo com cientistas que viraram gurus. O do filme está muito parecido com o dr. Fauci (o do dr. Strangelove ficava numa cadeira de rodas), ou com o empreendedorismo de Elon Musk ou Bill Gates. A média televisiva é pela superficialidade dos dois apresentadores, a loira e o negro -- mas há um negro realista, diretor da Nasa. O jornal escrito é poupado no início, depois abandona a busca da verdade. O radicalismo separa namorados e até famílias, como mostra o filme.

A presidente enfim ouve o astrônomo e concorda em mandar uma expedição para explodir o cometa. Escolhe um herói para o sacrifício -- com as mesmas caraterísticas do piloto caubói que atingiu Moscou montado numa bomba H, do filme de 1964. O astrônomo Di Caprio muda de lado, apoia a presidente demagoga, abandona a mulher e os filhos e se torna amante da apresentadora egoísta. Mas a cobiça de um empreendedor Big Tech convence a presidente a cancelar a missão, porque o cometa é muito valioso em minerais e ele e suas geringonças espaciais vão apenas fragmentá-lo. Vão aproveitá-lo para dar “riqueza e trabalho para todos”. A missão fracassa e a presidente manda o povo olhar para baixo, para não ver a realidade que se aproxima. Há uma alegoria de última ceia na família para onde volta o astrônomo, em que o único capaz de fazer uma oração final é um jovem de rua. Não vou falar no fim. E preciso ver o filme outra vez, para descobrir mais sátira em cada detalhe. Mas já senti que “Don’t look up” nos faz olhar para dentro e em volta, para ficarmos mais atentos sobre em que estamos metidos e por quê.

Alexandre Garcia é jornalista