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Natal, enfim

Artigo escrito por Leandro Karnal

24 de Dezembro de 2021 às 00:01
(Crédito: FÁBIO ROGÉRIO - ARQUIVO JCS (11/12/2021))

 

Crianças anseiam pelo Natal; adultos sabem que Papai Noel incrementa boletos. Seria um marcador de idade: como você reage ao cheiro de panetone que entra no ar a partir de outubro e se torna onipresente nos dias que antecedem a festa?

Sou suspeito. Sempre amei o Natal. No Fla-Flu gastronômico que o tema suscita, sou o que ama passas no arroz. Adoro comidas natalinas e músicas de Natal, inclusive a boa voz da Simone entoando: “Então é Natal!”

Uma amiga confessou-me que achava “Noite Feliz” depressiva. Acho a história da criação austríaca linda e já a contei em diversos grupos. A cidade de Oberndorf fica perto de Salzburgo. O padre Joseph Mohr precisava de uma música para versos que ele havia feito. Em uma das versões da narrativa, o órgão estava danificado e a música deveria ser cantada sem acompanhamento, ou seja, a capela. Talvez o padre tenha usado seu violão. Quem compôs a música rapidamente para a Missa de Natal de 1818 foi o amigo do religioso: Franz Xaver Gruber. A noite fria e calma na fronteira austro-bávara fez surgir, em alemão, o verso famoso “Stille Nacht, heilige Nacht”.

A noite é silenciosa e sagrada, fria como a descrição do primeiro Natal no Evangelho de Lucas. Os versos iniciais descrevem essa solene calma, ampla e poética, e convidam a nós, ouvintes, a contemplar, em sono intensamente coroado de paz, o bebê no colo da Virgem Maria. Funciona como um acalanto, uma canção de ninar para Jesus.

Em inglês, o sentido ficou apegado ao alemão: “Silent night! Holy night”. Em francês, a data fica doce e santa: “Douce nuit, sainte nuit”. Nossos vizinhos hispânicos entoam “noche de paz, noche de amor”.

No Brasil, a versão mais conhecida foi traduzida pelo franciscano Pedro Sinzig (morreu em 1952) e trouxe a novidade: nada de neve, paz, silêncio; a noite é feliz! Existe uma pequena distância entre a melodia lenta e quase elegíaca com a ideia de uma noite marcada pela felicidade. A música original era para o silêncio sacrossanto do inverno; a brasileira anuncia uma felicidade que combina pouco com as notas e o andamento da partitura.

A pequena igreja onde a música foi ouvida pela primeira vez não existe mais. As cheias devastadoras do rio Salzach obrigaram a reconstruir o prédio mais acima. Para mim, que a visitei, funciona como a casa de Julieta em Verona: uma história bem contada naquele lugar. Claro, o padroeiro da igrejinha é são Nicolau, o Papai Noel.

Em 2011, a ONU declarou “Noite Feliz” patrimônio imaterial da humanidade. Gostou? Vai cantar mais cheio de entusiasmo?

Independentemente da trilha sonora, tente uma noite bem feliz. Você está vivo e isso virou privilégio. Natal é esperança em uma noite muito feliz.

Leandro Karnal é historiador, escritor e membro da Academia Paulista de Letras. Autor de “A Coragem da Esperança”, entre outros.