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Entre Thêmis e Kafka

Artigo escrito por Alexandre Garcia

16 de Dezembro de 2021 às 00:01
(Crédito: REPRODUÇÃO / INTERNET)

 

Nove anos depois do incêndio na Boate Kiss, o caso foi julgado em Porto Alegre. Apenas quatro pessoas foram responsabilizadas por 242 homicídios e 636 tentativas de homicídio. Ao cabo de dez dias, os proprietários foram condenados a 22 e a 19 anos e o vocalista da banda e um auxiliar, a 18 anos cada.

A acusação os denunciara por dolo eventual com fogo, asfixia e torpeza. Depois, foram suprimidas essas qualificadoras e subsistiu homicídio simples. A defesa leu carta “psicografada‘ por um morto; o juiz proferiu uma sentença em linguagem dramática e estranha e o julgamento terminou deixando a impressão de que ficou faltando réu.

Afinal, a boate estava forrada com material inflamável com potencial de fumaça tóxica; não havia extintor funcionando nem saída de emergência para evacuar sua capacidade de 2 mil pessoas. Mas a boate estava credenciada por alvará oficial, o que significa ter sido inspecionada pela autoridade competente. O Estado, autor da ação penal, deve ter concorrido para a tragédia.

Os condenados não ficaram presos, pois houve recurso, derrubado anteontem pelo Ministro Fux. Coincidentemente, durante esses dez dias um réu de quase 400 anos teve sua pena diminuída de 14 anos, Sérgio Cabral. Faltam 385 anos, mas o TRF2 revogou a prisão preventiva e concedeu-lhe prisão domiciliar. Presente de Natal.

Também nesses dez dias o processo do triplex de Guarujá prescreveu, e com ele a condenação de Lula na Vara de Curitiba, confirmada no tribunal revisor, mas anulada pelo Supremo por questão de jurisdição -- a mesma razão que propiciou desconto de pena para Cabral. Lula já teve 26 anos de pena anulados; Eduardo Cunha, menos 38 anos.

Num desses dez dias o STJ mandou para o Tribunal Eleitoral 15 condenados, entre eles Palocci, João Vaccari, Marcelo Odebrecht, João Santana, porque concluiu que R$ 200 milhões de propinas da Odebrecht eram apenas caixa 2 de campanha. Segundo o “Estadão”, um total de 277 anos de penas já foi anulado -- a maior parte relativa à Lava Jato. A maciça maioria dos presos já está em liberdade.

O triplex agora vai ser sorteado pela pessoa que o arrematou em leilão. Outros itens serão sorteados entre os que entrarem, por R$ 19,99, numa plataforma da internet. Masà se já está prescrito o processo e Lula voltar a dizer que é dele? E se o pessoal que se livrou da lava-jato, e já devolveu o que depositou na Suíça, pedir o dinheiro de volta? Afinal, o TRF2 acaba de desbloquear os bens de Lobão e Jucá. E se os proprietários da Boate Kiss alegarem que foram vítimas da confiança gerada por um alvará que atestava segurança para eventos e processarem o Estado? Isso dá idéia do que chamamos no Brasil de segurança jurídica.

Nesses mesmos dez dias, por crime de opinião, e ao contrário de Sérgio Cabral, Zé Trovão foi confirmado em prisão preventiva, para não açular os ânimos dos manifestantes de 7 de setembro que passou. Também com preventiva o deputado Daniel Silveira, que talvez no 13 de dezembro tentaria ressuscitar o AI5? Além disso, a PGR sugeriu manter Roberto Jefferson preso, pois fanfarronice virou crime.

Tudo irônico e absurdo. Fica difícil justificar que quem desviou, em última análise, o dinheiro suado dos pagadores de impostos tenha da Justiça um tratamento complacente, enquanto sobra rigor para quem expressou pensamento e está preso sem condenação e condenados estão em liberdade pelo trânsito em julgado.

A Justiça deveria ser veneradora de sua deusa Thêmis; não cenário de “O Processo” de Kafka.

Alexandre Garcia é jornalista.