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Por quem os sinos dobram?

Artigo escrito por Leandro Karnal

12 de Dezembro de 2021 às 00:01
(Crédito: REPRODUÇÃO / INTERNET)

Neste fim de ano, cuide muito do seu mundo imediato; cultive a mais profunda esperança

A frase é do poeta e pregador John Donne (1572-1631). O inglês comentava que não deveríamos perguntar, quando o toque no campanário anunciava uma morte, por quem era o som. A humanidade é una e ninguém, portanto, é uma ilha. Assim, independentemente de quem estivesse sendo velado ou rememorado, os sinos dobravam por você, sempre... (“And therefore never send to know for whom the bell tolls; It tolls for thee”.)

A frase foi usada como título de Ernest Hemingway, em 1940, em romance sobre a terrível Guerra Civil Espanhola. Dali surgiu um clássico do cinema com a mesma dúvida de Donne, estrelado por Gary Cooper e Ingrid Bergman. O diretor, Sam Wood, foi o mesmo que terminara a filmagem de “...E O Vento Levou”, depois que Victor Fleming abandonou o set em uma crise de estresse. Por fim, o tema do toque de Finados moveu Raul Seixas a compor música com o mesmo título. Em versos de teor psicanalítico, o baiano colocou na letra: “É sempre mais fácil achar que a culpa é do outro / Evita o aperto de mão de um possível aliado / Convence as paredes do quarto, e dorme tranquilo / Sabendo no fundo do peito que não era nada daquilo”.

Os sinos dobram por nós. Somos parte de um todo. Cada homem ou mulher que termina sua existência torna a humanidade menor. A retirada de uma pequena porção de terra de um vasto território pode não se mostrar logo, mas o continente ficou menor. A metáfora é poética e religiosa.

O ano de 2021 foi de enormes perdas humanas no Brasil e no mundo. Ficamos bem menores com a pandemia. Entre tantas tragédias, eu perdi dois amigos. No começo dele, foi-se Contardo Calligaris (que não morreu de coronavírus). Era cheio de vida e transbordava de ideias e de planos. No fim do ano da peste, faleceu Marcelo Cunha, conhecido oftalmologista de São Paulo.

A convite da família Cunha, falei na igreja na missa de réquiem. Seguindo Donne, toda liturgia de finados é para nós. Ritos fúnebres sempre nos envolvem pelo afeto a pessoas amadas e pelo medo que ronda a incerteza do nosso destino. Choramos por quem vai e pelos que ficam. Choramos por nós. Fiz, na Igreja São José, apinhada, o elogio necessário e sincero a um grande amigo, pai, avô, médico, marido e cidadão. Lembrei-me do seu humor refinado e atenção com os outros.

Fiz muitas viagens com Marcelo e Rosana, sua esposa. Na missa, lembrei-me de uma frase confessional enunciada diante do Muro das Lamentações, em Jerusalém. Estávamos de quipá, separados das mulheres (a área de visita é diferente). Diante do Kotel, ele me disse que tinha pouco a lamentar e que a vida dele era intensa e feliz. Ele avaliava, sem saber que era profético, que a vida dele tinha valido a pena e que ele poderia morrer tendo feito o que queria fazer. Respondia à pergunta do filósofo Luc Ferry: “O que é uma vida bem-sucedida?”.

Vou citar outro inglês. O arquiteto da monumental catedral Saint Paul, de Londres, foi Sir Christopher Wren. Enterrado na base daquele prédio, a lápide anuncia, em latim, que se algum leitor quiser ver obras, monumentos da sua autoria, basta olhar ao redor (“Lector: Si monumentum requiris circumspice”). Para aferir o gênio de Wren, basta olhar ao redor do túmulo e teremos a prova em pedra. O talento dele cobre a memória do túmulo. Pensei na ideia naquela missa na Igreja de São José, aliás, o padroeiro da boa morte no mundo católico. Se eu quisesse ver as obras do Marcelo, ali estavam: a família, os pacientes, os amigos e os funcionários da Clínica e da Fundação. Ali, do púlpito, eu via a construção de uma vida: pessoas gratas e emocionadas. Naquele dia 19 de outubro de 2021, entendi que os sinos dobravam por nós. Todavia, não apenas anunciavam seu toque melancólico de dor, também o repicar entusiasmado de vida. Os sinos badalam, sem cessar, pela ilha-homem que se liga ao arquipélago vasto da humanidade. Somos o bem que fizemos, resta o carinho como obra, imortaliza-se o amor. Sim, os dois netos pequenos, Gabriel e Cecília, talvez não se lembrem do avô brincalhão no futuro, mas a vida do Marcelo estará neles e eles levarão adiante o dever de tocar mais sinos, anunciando a todos que a lista de passageiros muda sempre e que a viagem continua.

A obra dele continua na visão de milhares de pessoas que ele tratou, a minha inclusive. O toque é por todos nós, em sons eufóricos a bimbalhar ou em toque de nênias. Vida que fica ou que segue: do alto das torres os sinos mostram nossa combalida mortalidade como um hiato possível de felicidade entre dois toques, o do nascer e o de morrer.

Querem obras, querida leitora e estimado leitor? Olhem para as pessoas ao seu redor. Há novos sineiros a cultivar. Hoje, aniversário da morte do meu pai, ouço o som forte dos carrilhões que ele amava escutar. Há algo maior indicado por Donne, algo que nos excede: cada outra pessoa que seguirá quando eu, ser oxidável, deixar de poder ouvir qualquer coisa. Cuide muito das obras ao seu redor. É isso que move os sinos da eternidade e do afeto. Os sinos choram e riem conosco, como a vida. Neste fim de ano, cuide muito do seu mundo imediato. Cultive, no seu campanário, a mais profunda esperança!

Leandro Karnal é historiador, escritor e membro da Academia Paulista de Letras.