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Letra Viva

O astro (conto final)

Artigo escrito por Nelson Fonseca Neto

26 de Novembro de 2021 às 00:01
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Infelizmente vivemos num país de desmemoriados, e é por isso que vou retomar aqui o que eu disse na semana passada. Espero que os leitores compreendam a opção pelo estilo telegráfico. Depois o ritmo será um pouco mais cadenciado.

Sou futurólogo. Quando eu era criança eu não queria ser futurólogo. Ninguém falava em futurologia nos anos 80 e 90. Estudei administração de empresas. Eu não era a pessoa mais motivada do mundo com a minha profissão. Tudo o que eu fazia era para manter o prumo com uma certa dignidade. Aí a empresa onde eu trabalhava quebrou. Fiquei sem emprego. Sempre gostei de ler. As pessoas ao meu redor diziam que eu tinha bom repertório cultural. Por sorte, alguns amigos meus eram empreendedores ousados. Foi assim que a futurologia apareceu no meu redor.

(Importante: o futurólogo não é um místico. Ele é alguém remunerado para apreender tendências e fazer projeções com bom índice de acerto. Há quem diga que o futurólogo é um palpiteiro de luxo. Há muita inveja neste mundo.)

Quando iniciei este relato, minha intenção não era carregar nas tintas autobiográficas. Eu queria priorizar os aspectos mais desafiadores do meu ofício. Só que eu vi a necessidade de contextualizar as coisas. Seria estranho tagarelas sobre tendências da sociedade assim do nada. Soaria como maluquice. Por isso tratei da minha trajetória. Muita gente já disse que qualquer vida é plena de sentidos. A literatura dá conta disso como ninguém. Digo isso porque sei que eu poderia escrever centenas de páginas a respeito das miudezas da minha vida.

Uma última pincelada de cunho pessoal: um dos meus amigos empreendedores investia na bolsa de valores. A título de experiência, ele pediu para que eu projetasse como seria o Brasil dali a um ano. A partir das minhas projeções, ele compraria ações das companhias que deveriam estar em alta se o meu cenário se concretizasse. Esse meu amigo era muito rico e tinha bala na agulha para investimentos de longo prazo. Acertei na mosca e fui contratado como futurólogo. Estou nessa barca até hoje.

Acerto na maioria das vezes. Tem gente que acha que eu possuo dons mediúnicos. Besteira. Não acredito nessas coisas. Apenas sou um bom observador que se nutriu de leituras consistentes. É só juntar a isso algumas teorias sociais que desenvolvo nas horas de ócio. Não as revelo aqui porque elas soariam duras demais a quem acompanha este relato. Eu seria rotulado de cínico, de amargo, de descrente. Melhor não escarafunchar algumas coisas.

Sou um caçador de detalhes. As grandes coisas se revelam a partir das miudezas. Bela frase para colocar num livro e arrebentar de ganhar dinheiro. Eu poderia dar uma temperada com alguns versos de Manoel de Barros e servir o prato.

Deixando a palhaçada de lado: eu dizia que valorizo os detalhes. Não vou entregar o ouro aqui. Minhas previsões são bem remuneradas. Todavia, nada impede que eu ilustre, de maneira inofensiva, o meu ponto de vista. Vamos lá.

Começando com uma pergunta: a nostalgia tem a mesma intensidade nas mais diversas épocas? Sendo específico: um norte-americano de 30 anos de vida em 1955 era tão nostálgico quanto um norte-americano de 30 anos em 2021? Resposta: não. O cara de 1955, provavelmente, era muito mais otimista que o cara de hoje. Logo, o cara lá do passado era muito, muito menos nostálgico. É que otimismo e nostalgia são inversamente proporcionais. Consequência: o cara de 1955 era pirado em quinquilharias tecnológicas e em narrativas que apontavam um futuro em que as máquinas serviriam aos humanos. Basta pensar no desenho dos Jetsons. O cara de hoje, muito mais nostálgico, vê tudo com as coras apocalípticas. Ele consome, vorazmente, distopias. Faz pose de anacrônico ao criar textos em máquinas de escrever manuais.

O bom futurólogo olha para essas coisas, estica a corda e quase sempre sabe como as coisas estarão. É divertido ser futurólogo.

(Fim do conto)

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