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"Elize Matsunaga: Era Uma Vez um Crime" (parte 9 de 9)

Artigo escrito por Nildo Benedetti

26 de Novembro de 2021 às 00:01
A parábola "Diante da Lei" do filme "O processo", de Orson Welles, de 1962.
A parábola "Diante da Lei" do filme "O processo", de Orson Welles, de 1962. (Crédito: REPRODUÇÃO)

Os personagens diretamente ligados à ação da Justiça em “Elize Matsunaga” procuram comunicar a noção de que, em suas opiniões, pareceres e decisões, existe alto grau de racionalidade e lógica. Mas, como escrevemos na semana passada, a realidade é diferente e significativos fatores imponderáveis e irracionais definem o destino do réu e, por extensão, dos que estão sujeitos às leis.

A expressão literária dessa irracionalidade pode ser vista no livro “O processo”, em que Franz Kafka não só mostra o absurdo da instituição da Justiça, como de todas as instituições que procuram ordenar as ações de homens e mulheres em sociedade. Uma famosa parábola que resume o conceito de justiça contido no livro começa assim:

“Diante da Lei está um porteiro. Um homem do campo dirige-se a este porteiro e pede para entrar na Lei. Mas o porteiro diz que agora não pode permitir-lhe a entrada. O homem do campo reflete e depois pergunta se então não pode entrar mais tarde. É possível, diz o porteiro, mas agora não”.

Durante anos o homem do campo espera para ser admitido na Lei, envelhece e morre. Mas, durante todos aqueles anos de espera, “às vezes o porteiro submete o homem a pequenos interrogatórios, pergunta-lhe a respeito da sua terra natal e de muitas outras coisas, mas são perguntas indiferentes, como as que os grandes senhores fazem, e para concluir repete-lhe sempre que ainda não pode deixá-lo entrar”.

Em menor ou maior grau, os profissionais da Justiça da minissérie da Netflix são seguros de sua competência, pedantes e orgulhosos de sua condição privilegiada de decidir o destino de alguém que tenha cometido qualquer crime. Parecem-se com o arrogante porteiro da parábola kafkiana. Mas é o midiático promotor quem oferece o material mais interessante de ser analisado pelas Ciências Humanas. Para descrevê-lo com precisão, a melhor forma é recorrer ao que Nietzsche escreveu em “Genealogia da Moral”:

“Ver-sofrer faz bem, fazer-sofrer mais bem ainda -- eis uma frase dura, mas um velho e sólido axioma, humano, demasiado humano, que talvez até os símios subscrevessem. (...). Sem crueldade não há festa: é o que ensina a mais antiga e mais longa história do homem -- e no castigo também há muito de festivo!”

Um diálogo do promotor com uma entrevistadora da minissérie completa o que estamos afirmando:

“Voz de mulher: Se esse crime não tivesse ocorrido num condomínio de luxo, o senhor acha que teria tido a mesma preocupação moral?

Promotor: Ah, o mesmo peso. Pra mim, é... Eu tenho uma preocupação, assim, abissal com a respeitabilidade das pessoas”.

Estas palavras contém um ato falho (Freud definiu o ato falho como vontade de realização de um desejo inconsciente). É o uso do termo “abissal” que deriva de “abismo”, ou seja, ele emprega um termo que na verdade se encaixaria apropriadamente na frase: “Eu considero que há um abismo entre condomínio de luxo e favela”.

Sobre a falibilidade da Justiça e a atuação da imprensa no caso de crimes chocantes sugiro ao leitor que assista a dois documentários da Netflix: “Homicídio na Costa do Sol” e “Amanda Knox”. Na próxima semana escreverei sobre o primeiro, ressaltando a ação da imprensa em casos similares ao de Elize Matsunaga.

Esta série de artigos está incluída no projeto Cine Reflexão da Fundec

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