Buscar no Cruzeiro

Buscar

A sofrência e o feminejo

Artigo escrito por Edgard Steffen

13 de Novembro de 2021 às 00:01
Cruzeiro do Sul [email protected]
(Crédito: REPRODUÇÃO / INTERNET)

O seu prêmio que não vale nada, estou te entregando
Pus as malas lá fora e ele ainda saiu chorando
Essa competição por amor só serviu pra me machucar
(Versos de “Infiel”, sucesso de Marília Mendonça)

Suas músicas não fizeram parte do roteiro musical que me acompanha enquanto estudo ou trabalho. Mas foi impossível não me emocionar ou ignorar a tragédia que interrompeu vida e carreira da jovem cantora e compositora Marília Mendonça. Sofrimento coletivo varreu nosso País em abrangência e intensidade jamais experimentadas. A mídia cumpriu seu papel em informar e a briga pela audiência cuidou no exagero abusivo dos pormenores. Sinceras lágrimas rolaram pelas faces de famosos e símplices. Formariam um rio neste vale de lágrimas.

Dois neologismos destacaram-se nos textos lidos ou ouvidos. Sofrência e feminejo. Não os encontrei no velho e bom Houaiss. Na Internet, o Dicionário On-line registra o verbete “sofrência” como substantivo e adjetivo, feminino, com o significado “Condição da pessoa que sofre, que não se consegue livrar de uma situação de tristeza e de sofrimento; sofrença. Música cujas letras e melodias exaltam o sentimento de alguém que sofre por amor, por uma desilusão ou decepção amorosa, por carência”.

“Feminejo” está registrado na Internet como subgênero da música sertaneja que enfatiza as mulheres, seja pelas temáticas femininas ou pela atuação de cantoras e compositoras. Inclui a infortunada Marília Mendonça entre as principais representantes do gênero e acrescenta será sempre a Rainha da Sofrência.

A palavra sofrência foi usada pela primeira vez nos anos 60. Apareceu no “Samba Chorado” de Billy Blanco. A letra diz “O que dá pra rir, dá pra chorar dependendo da hora e lugar” e, em outro verso, “palavra sofrência que o dicionário não tem”. Agora tem. Perpetuar-se-á na obra de Marília.

Uso de metáforas sobre choro e lágrimas é comum nas letras das músicas em todos os tempos e lugares. O lacrimejo pode ou não estar ligado ao sofrimento. Na mais conhecida ária da ópera “O elixir do amor” (de Gaetano Donizetti), a furtiva lágrima derramada pela fazendeira Nadima alegra o humilde campesino Nemorino, porque revela que ela também o ama. “Una furtiva lacrima / negli occhi suoi spunt” (Uma fugidia lágrima /nos seus olhos desponta).

Pode ser catarse, como nos versos “Quero chorar, não tenho lágrimas / Que me rolem na face pra me socorrerà” Se debulhasse em prantos poderia readquirir o prazer pela vida. Vale a pena ouvir as interpretações de Nat King Cole (em legítimo portuñol, confira!) e de Paulinho da Viola.

O choro pode ser hiperbolicamente copioso como as lágrimas derramadas na “Madalena” de Ivan Lins “O mar é uma gota comparado ao pranto meu”. Ou as do Rio de Piracicaba que transbordará “Quando chegar a água / Dos olhos de alguém que chora” (sertanejo raiz de Tião Carreiro & Pardinho). Se você pensa que o exagero é uma jabuticaba, ouça o lamento de Billie Holiday em “Cry me a river / As I cried a river over you”. (música de Art Stern).

Chorar pode ser sofrença do caipira, no clássico “Tristeza do Jeca”, composto em Botucatu, há um século, pelo dentista Angelino de Oliveira. “Pois o Jeca quando canta da vontade de chorar (à) Não tem um que cante alegre...”

Ou a canora fossa das urbanas “dores de cotovelo”. Nora Ney celebrizou “Ninguém me ama, Ninguém me quer” (composição de Antônio Maria e Fernando Lobo) mas ficou aquém dos insuperáveis “Chove lá fora”, do pirajuense Tito Madi (“Quisera que soubesses como estou triste”à “A chuva continua mais forte ainda”) e “Ouça” da socialite Maysa Monjardin Mattarazzo. Ouça, vá viver a sua vida com outro bem / Hoje, eu já cansei de pra você não ser ninguém.

Esta última, precursora urbana de sofrências e feminejos nos anos 50.

Edgard Steffen ([email protected]) é médico, escritor e membro da Academia Sorocabana de Letras (ASL)