"Elize Matsunaga: Era Uma Vez um Crime" (parte 5 de 7)
Artigo escrito por Nildo Benedetti
Na semana passada comecei a escrever sobre a interpretação dada por Jorge Luis Borges para explicar por que Dante desfalece depois de ouvir relato de Francesca no Inferno.
Borges partiu de duas proposições: “o criminoso merece a pena de morte” e “Raskolnikov merece a pena de morte” (Raskolnikov comete um homicídio brutal em “Crime e Castigo”, do escritor russo Fiódor Dostoievski).
O conceito de assassino, escreve Borges, é uma mera generalização, uma abstração e por isso dizemos que os assassinos merecem a pena de morte. Mas Raskolnikov, para quem leu sua história no livro de Dostoievski, é um ser verdadeiro, concreto:
“Quem leu a novela de Dostoievski tornou-se, de certo modo, Raskolnikov e sabe que seu crime não é livre, pois uma rede inevitável de circunstâncias prefixou-o e impulsionou-o. O homem que matou não é um assassino, o homem que roubou não é um ladrão, o homem que mentiu não é um impostor (...); portanto, não há castigo sem injustiça. A ficção jurídica do assassino bem pode merecer a pena de morte, não aquele desventurado que assassinou, guiado por sua história passada e, talvez (...) pela história do universo.”
Borges conclui dizendo que Dante compreende e não perdoa. Esse é o paradoxo insolúvel. Sentiu que os humanos agem por necessidade e que assim mesmo é necessária a eternidade de bem-aventurança ou de perdição que estes atos acarreta. Por isso, embora se compadeça de Francesca, ele a condena ao Inferno porque sente que é indispensável uma justiça que recompense os bons atos e condene os maus atos.
O ensaio de Borges pode ser aplicado à nossa análise deste “Elize Matsunaga”. Elize é a generalização da noção de assassina cruel e desumana. Mas, para o espectador do documentário, ela é um ser verdadeiro, como o é Raskolnikov para quem leu a obra de Dostoievski. Plagiando Borges, diríamos que, para o espectador, o crime de Elize não é livre, pois uma rede inevitável de circunstâncias prefixou-o e impulsionou-o. Ficamos sensibilizados e nos compadecemos de sua condição.
O paradoxo apontado por Borges, o de Dante compreender e, ao mesmo tempo, condenar, diz respeito à questão do livre-arbítrio e da necessidade principalmente sob o ponto de vista religioso. Para adaptá-lo ao crime de Elize, temos de voltar à psicanálise.
O indivíduo procura satisfazer suas pulsões inconscientes, mas a psicologia individual não pode ignorar as relações de um ser humano com outros seres humanos. Nestas relações, escreveu Freud, estão as maiores fontes de prazer e de sofrimento. Ao regular as relações dos seres humanos que lhes permitam distanciar-se do estado de selvageria, a civilização exige do indivíduo a renúncia das pulsões agressivas. É esse o permanente mal-estar provocado por ela sobre o indivíduo. A psicanálise não afirma que todo criminoso não pode ser julgado porque seus atos atendem às demandas das pulsões destrutivas inconscientes. O julgamento desses atos é essencial à realização do estado de cultura. Este é o equivalente, na psicanálise, do paradoxo apontado por Borges na religião. Reconhecemos que ser humano age sobretudo por necessidade e, ainda assim, é necessária a punição por seus atos que ponham em risco a civilização.
Continua na próxima semana.
Esta série de artigos está incluída no projeto Cine Reflexão da Fundec