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O fosso - I

Artigo escrito por Leandro Karnal

05 de Novembro de 2021 às 00:01
Cruzeiro do Sul [email protected]
(Crédito: REPRODUÇÃO / INTERNET)

“E era mais uma das coisas de tudo o que tínhamos perdido no outro lado da casa.”
Julio Cortázar, “Casa Tomada”

Sérgio e João, finalmente, conversaram sobre o estranho incômodo que estavam sentindo havia algum tempo. Fora o irmão mais velho quem puxara a conversa, com algum receio de ser mal-entendido. Começou dizendo que achava que aquilo vinha da vizinhança, talvez das ruas ali em volta. De madrugada, inundava a pequena casa.

A moradia era simples, bem no meio do lote, todo ele bem cuidado pelos dois moradores principais. Na sala, dormia ainda o sobrinho, filho de uma irmã de Sérgio e João que morava no interior. O rapaz frequentava um curso noturno e trabalhava durante o dia. Usava o sofá como cama e a pequena cozinha para engolir algo tarde da noite e um café preto com pão com manteiga pela manhã, bem cedo. Mal via os tios.

Os donos da casa nunca desejaram ampliar o diminuto imóvel. Terreno para isso havia e os vizinhos, sem exceção, construíram cômodos a mais, banheiros extras, cozinhas maiores e áreas cobertas no pátio. A casa dos Soares mantivera a metragem e forma originais.

Talvez a razão para isso fosse o incômodo revelado, aquele que misteriosamente apenas os irmãos pareciam experimentar. Era algo notívago, perigoso, sufocante. Acordavam suados e passavam noites em vigília, esperando o pior. Dormir era um problema, pois a casa parecia se encher de um miasma forte, perigoso e fatal.

Decidiram agir. Estavam velhos, mas tinham seus truques. Havia algo de muito estranho naquela casa e os irmãos não mais sofreriam quietos. Era impossível continuar sem uma resposta ao mal que crescia e ameaçava tomar tudo e todos. Como?

A ideia foi de João: isolariam a casa da rua, do restante do mundo, criando um fosso grande o suficiente que emanação alguma como aquela os alcançaria. Sérgio iluminou o rosto com o plano. Ferramentas em mãos, começaram a escavação em 2002. Todos os dias, desde aquele longínquo agosto, parando para descansar apenas aos domingos, do raiar do sol ao seu último brilho sobre o lote, os irmãos cavavam a terra meticulosamente. O sobrinho não via nada e assim deveria ser.

Os dois irmãos estavam muito focados na obra de isolar sua residência. Poucas coisas eram ditas, porém o trabalho foi sendo realizado com trocas de olhares de cumplicidade. A defesa do patrimônio comum fortaleceu o vínculo fraterno dos dois. Eram soldados de uma estranha batalha com a solidariedade que a trincheira costuma criar. O fosso crescia centímetros todos os dias.

Leandro Karnal é historiador, escritor e membro da Academia Paulista de Letras.


A segunda parte deste artigo será publicada na edição de domingo (7)