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Nada aprenderam, nada esqueceram

Artigo escrito por Leandro Karnal

24 de Outubro de 2021 às 00:01
Cruzeiro do Sul [email protected]
(Crédito: REPRODUÇÃO / INTERNET)

 

No longínquo 2018, escrevi sobre o velho príncipe Talleyrand (1754 - 1838), daquelas personagens a que nós estamos acostumados, possivelmente sem ligar o nome à pessoa. Sinto-me impelido a falar dele de novo. Se bem que não me interessa tanto o diplomata em si, porém sim o tipo que ele personificou. Sobe governo, cai governo, ele está lá, sorridente junto ao trono. Não tem princípios, tem carreira e, claro, interesses. Corresponde ao tipo cínico, não no sentido filosófico grego, todavia na pessoa com tal grau de flexibilidade moral que esteja distante da moral em si.

Ler um autor assim causa um estranhamento: por um lado, parece que ele é realista, alguém que não se deixa enganar, um homem atento ao mundo real e não ideal. Por outro lado, parece que rejeitamos a visão de mundo que ele apresenta e, talvez, nunca consigamos distinguir se rejeitamos o mundo tal como Talleyrand o descreve ou o próprio príncipe-autor. Com o tempo, eles viram um símbolo e, como Maquiavel, acabam atraindo todas as ideias similares para si, transformando-se em autores consagrados de coisas que nunca disseram.

Exemplos? No campo de gênero, ele dizia que as mulheres poderiam até perdoar a tentativa de sedução de um homem, ainda que nunca perdoassem se o homem desperdiçasse tal oportunidade oferecida. Qual o papel dos homens medíocres? São fundamentais nos grandes eventos porque... não se encontram neles. E o uso da palavra? Ele considerava a oratória um dom para poder disfarçar o próprio pensamento. E a política? Para ele, era uma forma de agitar as pessoas antes de usá-las. Em frase similar, o nobre recomenda agitar o povo antes de poder usá-lo (Agiter le peuple avant de s’en servir, sage máxime).

Como eu disse, pessoas muito cínicas possuem dom magnético e tudo que parecer representar o distanciamento de valores morais acabará grudando nelas. Quando os Bourbons foram restaurados após a Revolução Francesa, o bom senso imaginava que eles teriam aprendido uma dura lição. Luís XVI fora decapitado, a guilhotina tinha feito estragos amplos, o mundo tinha mudado completamente e os ventos napoleônicos atingiram quase toda a Europa. O mundo de 1814-15 era distinto daquele que aceitara o poder absolutista no período do Antigo Regime. Os irmãos do guilhotinado assumiram o trono: Luís XVIII e, depois, Carlos X. Bom senso, sensibilidade política, moderação...

Nada! Voltaram iguais ou piorados: perseguiram quem participou da Revolução. Sem anistia, sem negociação, sem equilíbrio diplomático: aos Bourbons, atribui-se a frase a Talleyrand, “nada tinham aprendido, porém, nada tinham esquecido”. A frase, na verdade, foi enunciada bem antes da Restauração. Acabou apegada ao autor como análise da política desastrada dos governantes. Nada aprenderam porque não avaliaram a mudança do mundo.

Funcionaram como um professor que, em pleno ano de 2021 e sob vigência do Estatuto da Criança e do Adolescente, quisesse a volta da palmatória. Por outro lado, se foram atacados de amnésia seletiva diante da história, deveriam, ao menos, ter feito faxina geral na culpa, igualmente. Não! Nada esqueceram, nada perdoaram, tudo lembraram de quem tinha atuado contra a família ou quem era a favor de Napoleão. A incapacidade de acompanhar o mundo, somada à incapacidade de esquecer ofensas passadas, custou a coroa, mais uma vez, à família. Em 1830, subiu ao poder Luís Filipe d’Orléans, que havia aprendido algumas coisas e esquecido outras.

A ideia (nada esqueceram, nada aprenderam) foi usada com frequência depois. Quando o presidente Bolsonaro fala algo que fere ouvidos de outros poderes, existe uma reação e, quase sempre, o chefe do Executivo retrocede. Muitos se lembram de Talleyrand quando ocorre novo ato de confronto. Quando Lula faz discursos sobre sua volta, muitos se lembram da dupla advertência do político francês. Tanto para os chamados conservadores como para a chamada esquerda, o príncipe Charles-Maurice de Talleyrand-Périgord sorri e recomenda aprender algo e esquecer-se de muitas coisas.

Agora pediremos calma ao andor que o santo é brasileiro. A ideia é aprender e esquecer como estratégia política de cooptação de adversários, solapamento de valores e flexibilidade moral para atingir o poder. É isso que estamos recomendando aos nossos políticos? Bem, historicamente, eles já praticaram bastante esses processos de esquecimento de programas para comporem alianças as mais amplas possíveis. Maluf, Lula e Haddad se abraçando nos jardins da mansão paulistana é a prova de que, em matéria de esquecimento, nenhum francês pode dar qualquer lição aos nossos políticos.

Queremos Bolsonaro declarando amor genuíno ao sistema de freios e contrapesos dos poderes constitucionais? Seria uma concessão excessiva ao teatro midiático se nosso chefe do Executivo passeasse entre as emas no jardim do palácio lendo Locke e Montesquieu? O que de fato Talleyrand defendeu a vida toda é que o aprendizado e a amnésia fossem instrumentos hipócritas para manter o poder. Assim ele conseguiu fazer durante a Revolução, com Napoleão e com os reis seguintes. Ele aprendia tudo e conseguia apagar tudo que atrapalhasse seu projeto. É isso que desejamos?

Sinuca de bico: detestamos a sinceridade em política e pregamos que os políticos sejam sempre sinceros. Só elegemos quem prometa o paraíso e jamais toque em medidas amargas e necessárias. Queremos que eles aprendam tudo e se esqueçam de tudo, desde que não afetem nossos interesses ou dinheiro. Na prática: continuam lembrando-se de tudo que interessa ao poder e nunca esquecendo que somos sensíveis a narrativas míticas. Vive le roi! Vive la Révolution. Vive moi-même! Importante, “même”, aqui, não é o desenho do WhatsApp... Resta a esperança.

Leandro Karnal é historiador, escritor e membro da Academia Paulista de Letras.