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Médico, qual é o teu nome?

Artigo escrito por Edgard Steffen

23 de Outubro de 2021 às 00:01
Cruzeiro do Sul [email protected]
(Crédito: "THE DOCTOR" - QUADRO DE SAMUEL LUKE FIELDS (1877) - REPRODUÇÃO / INTERNET)

18 de outubro Dia do Médico
Amamos todos os seres humanos porque Deus os ama
(Martin Luther King Jr)

A faxineira que auxilia na manutenção da limpeza de nosso apartamento queria saber se nódulo é câncer. Tentei fazê-la entender que nós, médicos, costumamos dar esse nome às formações arredondadas, como bolas de gude ou de pingue-pongue, que encontramos no organismo dos pacientes. Ela fizera exame de imagem e pedira para alguém ler o laudo. O resultado relatava um nódulo (não disse onde). Estava preocupada e o retorno à consulta demoraria. Tentei tranquilizá-la. -- Quem é o seu médico? -- Não sei o nome dele, mas ele é muito bom. Sempre pede bastante exames, completou.

O diálogo com a faxineira mostra relação impessoal do médico com o paciente. Dona Maria de Tal é cliente de um centro de saúde ou de um convênio. Será atendida por um médico sem nome. Este priorizará os exames subsidiários sobre o exame clínico. Duas consequências. Primeira: o nível de acerto é muito maior; por isso a prática médica atual é mais efetiva, eficaz e eficiente que a do século precedente. Segunda: os custos da assistência médico-hospitalar subiram às nuvens.

A cena banal é bem um retrato falado do exercício da medicina moderna. Pessoa simples, sem plano de saúde, consegue pelo SUS exames sofisticados. O médico ficou mais perto da doença e mais longe do doente.

Criticado pela maioria, o sistema brasileiro mostrou sua força e importância na pandemia de Covid19. Os erros e equívocos vieram das incompetências gerenciais, mas os acessos ao tratamento não ficaram restritos ao pagou/não pagou ou tem/não tem plano de saúde. Contrariando a anódina e anônima relação médico/paciente, heróis de todas as profissões lutaram e lutam transbordando afetividade neste momento sombrio. Nunca se notou tanta humanização e compaixão como na luta contra a pandemia. Choraram os fracassos e comemoraram a recuperação dos que venceram o novo coronavírus. Os pacientes tinham nomes; os profissionais da saúde, nem sempre.

Medicina como sacerdócio é coisa do passado. Foi muito explorada pela política de “p” minúsculo. Era muito fácil montar um serviço médico. Bastava uma mesa, três cadeiras, um divã, um estetoscópio, um termômetro e um aparelho de pressão... Ah! Sim e um médico disposto a diagnosticar e tratar o que surgisse. Retaguarda? Nem pensar. Privilegiados os que contribuíam para algum instituto de previdência ou eram suficientemente abonados para arcar com as despesas.

O diagnóstico é a base para o tratamento. Em algumas doenças, a diferença entre a vida e a morte. No curso médico e no contato com colegas -- cinquenta anos de consultório, encerrados em 2007 -- pude assistir ou/e participar de intrincados diagnósticos, baseados exclusivamente na atenção aos sintomas e no encontro de sinais ao exame físico.

Há poucos anos a crônica “Por onde andará meu doutor?” viralizou na Internet. A dra. Tatiana Bruscky, médica pernambucana, desalentada com a consulta impessoal, plena de guias, exames e receitas prontas no computador, implorava:

Olhe para mim...
Bem verdade que o juramento dele está ultrapassado!
Médico não é sacerdote...
Tem família e todos os problemas inerentes ao ser humano...
Mas, por favor, me olhe, ouça a minha história!
Preciso que o senhor me escute, ausculte e examine!

O poema da médica recifense é lindo e expressa o desalento contra os rumos da medicina de alta tecnologia. Apenas não concordo com os versos finais “A medicina agoniza... / ouço até os seus gemidos...” A Medicina como Ciência e Arte de Curar muito progrediu. Hoje diagnostica, sara ou controla doenças antigamente incuráveis.

Na profissão médica é preciso resgatar os nomes. Nem o doente nem o médico que o assiste pertencem ao sistema. São pessoas. Têm nomes, medos, sonhos e problemas. Nem sacerdotes nem números. Quem geme em agonia são dois seres humanos ante a impessoalidade da relação.

Edgard Steffen ([email protected]) é médico, escritor e membro da Academia Sorocabana de Letras (ASL).