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O silêncio na pandemia

Artigo escrito por Leandro Karnal

22 de Outubro de 2021 às 00:01
Cruzeiro do Sul [email protected]
(Crédito: FÁBIO ROGÉRIO (9/10/2020))

Ao contrário dos carros que emitem ruídos estranhos, nossas mazelas não fazem ruído

“O pior som de uma pandemia é o que, em música, chamamos de pausa: o silêncio. Há algo ensurdecedor no que vivemos: vozes de mais de 600 mil pessoas que deixaram de falar. A morte é a coisa mais gritante e inaudível em perversa combinação. Ao contrário dos carros que emitem pequenos ruídos estranhos quando estão com algum problema, nossas mazelas físicas raramente provocam ruído. O vírus que avança, o tumor que se instala, a artéria que se entope de vez são, usualmente, um gato andando sobre um tapete grosso: nada se ouve.

Além do silêncio enorme causado pela pandemia, há o apagar de vozes importantes na arte. Músicos ficaram sem emprego, orquestras fecharam, deixamos de produzir shows e a pausa malévola dos palcos atingiu camarins, coxias, luzes e figurinos. Conviveremos muito tempo com os efeitos colaterais da pandemia na área cultural. Decidimos reabrir bares e restaurantes, depois escolas e, por fim, teatros e casas de espetáculo. O risco de contaminação é grande em todos; a ordem mostra algo do nosso mundo e dos valores que praticamos.

Talvez as crises históricas (guerras, revoluções, desastres naturais e epidemias) tenham sempre um efeito duplo. Por um lado, aceleram o que já estava posto. A Peste Negra do século 14 desestruturou o já claudicante feudalismo. A Grande Guerra (1914-18) fez ruir impérios decadentes e multinacionais como o turco-otomano ou o austro-húngaro. Porém, além de acelerar o que já era notado, os processos citados costumam revelar o que se tentava disfarçar ou se convivia sem alarde. As crises revelam muito o caráter dos seus atores e atrizes.

A pandemia desnudou muitas pessoas. Acompanhei gente que descobriu, enfim, o peso do desamparo da pobreza no Brasil. Alguns amigos se tornaram voluntários. O epítome da doação que brilhou ainda mais no caos sanitário e social que vivemos foi o padre Júlio Lancellotti. Sim, há quem o considere equivocado. Existem detratores da sua ação. Acusam a publicidade constante que ele intensificou com fotos em redes sociais. Um “agente do comunismo internacional”, aquele risco extraordinário que habita o fundo do último buraco da consciência de alguns reacionários. O comunismo no Brasil é como a neve no nosso País: sim, pode ocorrer aqui e ali de forma bissexta, acumula pouco sobre o solo, derrete ao sol e produz bonecos muito pífios com turistas encantados. Nosso comunismo é como a neve em Gramado, deleite de Instagram mais do que efervescência revolucionária...

Imagino que, estando com fome na rua, uma pessoa não olha para o padre Júlio e pensa: nossa, este cara está tentando me cooptar para um projeto político esquerdista baseado na sociologia de Marx e Engels. Acho que, quase todos, devem ficar agradecidos. A cena do padre Júlio batendo com marreta pedaços concretados de engenharia de sanitarismo social canhestro é uma das mais marcantes. Discorda? Sem problema: qual a sua prática cotidiana a favor de pessoas em situação de rua? Se você faz algo distinto e eficaz sobre a questão, então, tem condições de se posicionar de forma diferente. Para sair da rua, precisamos de esperança.

Leandro Karnal é historiador, escritor e membro da Academia Paulista de Letras.