Buscar no Cruzeiro

Buscar

‘Elize Matsunaga: Era Uma Vez um Crime’ (parte 2 de 7)

Artigo escrito por Nildo Benedetti

22 de Outubro de 2021 às 00:01
Cruzeiro do Sul [email protected]
A paulistana Eliza Capai, diretora da minissérie Elize Matsunaga.
A paulistana Eliza Capai, diretora da minissérie Elize Matsunaga. (Crédito: DIVULGAÇÃO)

Encerrei o artigo da semana passada levantando a questão enfrentada pela filosofia cristã dos primeiros séculos para explicar por que o mal pode existir no mundo. No centro dessa questão está o quanto dos atos do ser humano é fruto de sua própria escolha, ou seja, se ele age com liberdade, e quanto é fruto de um destino traçado por Deus, ou seja, se age por necessidade. O livre-arbítrio determina a liberdade de ação pelo indivíduo e a necessidade, a de atender ao imperativo de um destino que só pode ser alterado por meio de um milagre divino.

Os desdobramentos dos conceitos de liberdade e necessidade levanta uma série de perguntas: se o ser humano age por necessidade, isto é, se sua vida é determinada por um Deus onisciente e onipotente, qual o sentido da condenação e da salvação da alma? Se age com liberdade, por que um Deus onisciente e onipotente permite que ele pratique o mal e não apenas o bem? E muitas outras.

A tragédia grega já havia tratado da questão que envolve os conceitos de liberdade e de necessidade. No livro “Mito e Tragédia na Grécia Antiga”, Vernant & Vidal-Naquet afirmam que a característica marcante da tragédia é a ambiguidade decorrente do fato de os sentimentos, as falas e os atos do herói trágico dependerem simultaneamente de seu caráter e de uma potência religiosa que age através deles. Ou seja, sua vida se desenrola em dois planos que na tragédia se apresentam como inseparáveis um do outro: cada ação aparece na linha e na lógica de um caráter e, ao mesmo tempo, se revela como a manifestação de uma potência do além, que pode ser boa ou má. “A lógica da tragédia consiste em ‘jogar nos dois tabuleiros’, em deslizar de um sentido para o outro, tomando, é claro, consciência de sua oposição, mas sem jamais renunciar a nenhum deles”. Um exemplo é o caso de Édipo.

Os racionalistas do Iluminismo do século 18 tiveram de achar um substituto para o destino, porque, em um mundo no qual Deus se iguala à razão, o destino não pode existir. Um Deus que precisasse fazer milagres para corrigir o que Ele mesmo determinara, estaria negando Sua onisciência. Assim, os iluministas criaram a coincidência, o acaso, para explicar eventos incompreensíveis para a mente humana.

Para os religiosos, o destino é determinado por um Deus onipotente. Mas é possível apresentá-lo sob a perspectiva da psicanálise e, para isso, resumirei o texto que redigi sob a orientação do psicanalista e psiquiatra Hang-Li Ikegami Rochel quando escrevi sobre o filme “Inferno”, já exibido pelo Cine Reflexão na Fundec.

Freud substituiu o destino pelo inconsciente, que é calcado em pulsões de vida e de morte. Os desejos recalcados no inconsciente seguem seus caminhos por subterrâneos, até serem expostos por um evento que fragiliza as defesas do indivíduo. Estariam, assim, colados no indivíduo, habitando dissimuladamente o sujeito quase despersonalizado, o que explicaria o que diz Elize em vários momentos de seu depoimento, como se fosse vítima do próprio ato: “Eu tentei não errar, mas eu não consegui”, “Eu ainda não sei dizer que tipo de emoção fez eu apertar aquele gatilho” e outras declarações similares.

Continua na próxima semana

Está série de artigos está incluída no projeto Cine Reflexão da Fundec

[email protected]