Buscar no Cruzeiro

Buscar

Filmes da Netflix: "Suvenir" (parte 2 de 2)

Artigo escrito por Nildo Benedetti

08 de Outubro de 2021 às 00:01
Cruzeiro do Sul [email protected]
O castelo de Barba Azul na produção do Metropolitan Opera of New York.
O castelo de Barba Azul na produção do Metropolitan Opera of New York. (Crédito: DIVULGAÇÃO)

A ópera “O Castelo de Barba Azul” inicia quando o duque Barba Azul leva sua nova esposa Judith para dentro de seu castelo. O castelo não tem janelas, seu interior é escuro, as paredes de pedra são úmidas. A música composta por Béla Bartók para a ópera é expressiva, sombria, concisa e densa.

Judith deixou a família e o noivo para seguir Barba Azul. Quando nota que o castelo contém sete portas fechadas, implora a Barba Azul que as abra, repetindo que o ama. Ele resiste o quanto pode, mas vai abrindo as portas. Elas dão para salas de tortura, de armas, um jardim etc. Mas ele se recusa a abrir a sétima, ela insiste, ele acaba lhe dando a chave e lá Judith encontra as três belas esposas anteriores do duque, que parecem mortas, mas ainda vivem, cheias de joias. Ele diz a Judith que ela será a quarta a partir de agora e fecha a porta.

Como se pode imaginar, essa história cheia de simbolismos gerou um sem número de interpretações, como o conflito entre o homem racional e criador e a mulher inspiradora e intuitiva; ou uma alegoria da solidão e da incompreensão inerente à condição humana; ou que o castelo representaria a própria alma, a vida interior de Barba Azul, onde ele admite sua nova amada, mas a mulher, ao insistir em saber tudo sobre o homem que ama, acaba por destruir o amor ao invés de aprofundá-lo. Penso que essas interpretações se aplicam ao filme.

O final do filme corresponde à abertura da quinta porta da ópera, que dá para as imensas terras de Barba Azul. De um salão escuro, como o castelo da ópera, Julie abre uma porta imensa que dá para o exterior. Este é um final ambíguo, porque pode indicar a libertação de Julie do mundo íntimo, atormentado e recluso de Antony que a faz sofrer a ameaça levá-la à destruição ou também significar que, como na ópera, uma sexta porta a aguarda, que dá para um lago de lágrimas, e uma sétima, onde se alojam antigos amores que nunca serão esquecidos.

*

Como vimos, nossa interpretação do filme foi proposta a partir da trilha musical. Abolimos o vínculo afirmativo entre fatos narrados e música, vínculo que, em sua forma mais rudimentar, se faz utilizando obras geralmente fáceis de memorizar que procuram dar ao espectador pistas emocionais por meio da reprodução de clichês que são associados com estados de ânimo (tristeza, paixão, violência etc.). Esse vínculo adota como verdadeira a noção equivocada de que todos sentem a mesma música da mesma maneira.

O sociólogo e musicólogo Theodor Adorno e o compositor Hans Eisler, em “A música no cinema” afirmam que a trilha sonora não é feita para confirmar, mas para interrogar sobre as múltiplas interpretações que imagem e diálogos possibilitam. Neste “Suvenir”, a ópera de Bartók não serviu para adicionar sentimentos a imagens e diálogos. A música desligou o espectador da ilusão de realidade e fez que o filme se convertesse em modo de caracterizar acontecimentos situados no futuro, no presente ou no passado, mas que são desconhecidos dos personagens; estabeleceu ligações entre sentimentos aparentemente conflitantes; mostrou situações emocionais sem saída; e assim por diante. Ou seja, levou o espectador a uma tomada de posição sobre os acontecimentos narrados.

Na próxima semana escreverei sobre a minissérie “Elize Matsunaga”

Está série de artigos está incluída no projeto Cine Reflexão da Fundec

[email protected]