Filmes da Netflix: ‘Suvenir’ (parte 1 de 2)
Artigo escrito por Nildo Benedetti
Suvenir (“The souvenir” em inglês), dirigido pela inglesa Joanna Hogg começa em Londres, década de 1980. Julie é uma jovem estudante de cinema que quer realizar um filme. Conhece Anthony, funcionário do Ministério das Relações Exteriores. Ele mostra interesse pelo trabalho da jovem, tenta ajudá-la e os dois começam um relacionamento afetivo, em que Julie se envolve completamente. De início, ela não dá peso ao fato de ele lhe pedir dinheiro ou de fazer que ela pague as contas dentro ou fora da casa. Pouco a pouco, porém, passa a desconfiar que ele seja um viciado em heroína. O relacionamento começa a deteriorar, mas ela permanece ao seu lado enquanto pode.
Uma pergunta que intriga o espectador enquanto assiste ao filme é: por que alguém permanece agarrado a uma relação tão infeliz e destruidora? Se recorrermos à psicanálise, podemos explicar essa condição de sofrimento dizendo que as pulsões de morte fazem que a vida não se oriente naturalmente para o bem próprio e em algumas pessoas pode levar à própria destruição ou mesmo à morte. Caso contrário, como explicar comportamentos que levam o indivíduo a repetir experiências dolorosas ou contrárias à conservação da vida, como a bulimia, a anorexia, o alcoolismo, o vício em drogas -- como Anthony --, de alguém se tornar escravo de um parceiro que o faz sofrer e que o destrói, como faz Julie?
Poderia continuar desenvolvendo esse interessante aspecto psicanalítico, porém, nestes artigos darei uma interpretação baseada na trilha musical do filme. Ela é composta por mais de 20 músicas, das quais apenas alguns fragmentos são executados e geralmente uma única vez. A obra musical que é, de longe, a mais presente no filme -- uma dezena de vezes -- são trechos da ópera “O castelo de Barba Azul”, de 1911, do compositor húngaro Béla Bartók. A frequência da obra na trilha sonora leva-nos a considerar a possibilidade de que algumas ideias que podemos extrair da análise do texto da ópera podem ser aplicadas na análise do filme. Algumas pistas reforçam essa perspectiva de interpretação: o fato de a ópera ter apenas dois personagens -- Judith e Barba Azul -- e no filme ela ser executada exclusivamente quando Anthony e Julie estão em cena, depois do início do relacionamento afetivo dos dois; Julie pergunta a Anthony quantas mulheres ele amou antes dela e ele, vacilante e a contragosto, lhe diz que foram três. Judith faz a mesma pergunta a Barba Azul, ele evita responder (“Não me perguntes nada”, diz) e mais tarde saberemos que também foram três. A propósito, “Julie” tem alguma semelhança fonética com “Judith”.
A ópera se baseia num conto infantil que Charles Perrault publicou em 1697. Sua trama gira em torno do duque Barba Azul, homem rico e violento que atrai mulheres ao seu castelo e as assassina.
As crianças costumam interpretar literalmente os contos infantis, mas os adultos têm a possibilidade de extrair deles um conteúdo simbólico que pode expressar uma verdade profunda, uma vez que tratam dos mais intensos sentimentos humanos -- como amor, ódio, inveja etc. -- e de temas universais como bem e mal, família, justiça etc. É o que sucede com “O castelo de Barba Azul”.
Conclui na próxima semana.
Esta série de artigos está incluída no projeto Cine Reflexão da Fundec