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A biblioteca do fim do mundo?

Artigo escrito por Leandro Karnal

26 de Setembro de 2021 às 00:01
Cruzeiro do Sul [email protected]
(Crédito: REPRODUÇÃO / INTERNET)

O tema começa comigo. Cheguei a ter mais de dez mil livros. Uma vida comprando, ganhando e escrevendo tomos e mais tomos. Foram guardados com zelo e cresceram como coelhos libidinosos e férteis. Usaram as estantes, invadiram a parte inferior da cama, acumularam-se na escrivaninha. Foram se erguendo em torres. Não importava quão amplo era o espaço para o qual eu me mudava: os livros zombavam da minha ascensão geográfica e superpovoavam o novo território. Houve um dia, há alguns anos, que eu decidi não morar mais em um sebo.

Havia uma novidade além da falta de espaço. Eu contei quantas vezes eu tinha aberto os dicionários físicos nos últimos anos. Escrevo consultando todo tipo de glossário, léxico e referências, pois tenho dúvidas a todo instante. Percebi, porém, que só utilizava versões virtuais. E lá estavam eles, os solenes dicionários da língua portuguesa e de outras línguas, enfileirados, volumosos e com seu poder magnético para poeira. Tomei a decisão e doei 17 deles para bibliotecas públicas. Mantive os mais antigos, como o Dicionário Analógico do Pe. Carlos Spitzer e os velhos volumes do Caldas Aulete. Reduzi de 27 Bíblias para 6. Doei todos os atlas, inumeráveis. Golpe de misericórdia, esvaziei minha sala da Unicamp e repassei milhares de volumes sobre História da América para pesquisadores da área. Que sigam iluminando outros como a mim foram luz contra minha ignorância. Que sirvam a mais gente. A minha biblioteca foi evaporada pela mudança tecnológica e bibliográfica.

Há três anos eu estava na British Library de Londres. De repente, eu percebi algo naquele novo prédio ao lado da estação Saint Pancras (São Pancrácio). Nos andares que percorri, todos estavam estudando com seus computadores, ninguém com livros. O volume físico existia naquele espaço, todavia todos queriam o Wi-Fi, o aquecimento e, talvez, acesso aos volumes digitalizados de quando em vez.

Por séculos, uma biblioteca foi um coroamento da civilização. Existiam nas sedes do império, como a já citada Britânica, a de Paris ou a do Congresso, em Washington. A destruição de uma grande coleção de livros era chorada por séculos. O “Nome da Rosa”, de Umberto Eco, ficcionaliza a tragédia de uma imensa torre-biblioteca em chamas. Queimar livros é o sinônimo máximo da barbárie. O poeta Heinrich Heine profetizou que aqueles que ateassem fogo a obras publicadas acabariam queimando pessoas. Inquisidores haviam feito isso. Nazistas reforçaram a veracidade profética da frase.

O incêndio da biblioteca de Alexandria é um debate. Fogo ateado por Júlio César ao afirmar seu poder no delta do Nilo? Por cristãos? Por islâmicos? Temos relatos tão variados que podemos considerar viável a hipótese de que a acusação do incêndio seja uma peça de propaganda contra algum inimigo. Derek Flower estudou a biblioteca supostamente incendiada, desde seus relatos eruditos da antiguidade (“Biblioteca de Alexandria”, ed. Nova Alexandria) até hoje, com o novo prédio do governo egípcio. Lilia M. Schwarcz pesquisou outra biblioteca seminal, desta vez no Brasil: em “A longa viagem da biblioteca dos reis” (Companhia das Letras), pode-se descobrir como a Real Coleção de Livros de Portugal atravessou o oceano e gerou a atual Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro.

Devastadas por tragédias como terremotos, destruídas por fanáticos, atacadas nas guerras: as bibliotecas são frágeis. Lembro-me de outro belíssimo espaço de livros no Brasil para indicar mais uma análise: o Real Gabinete Português de Leitura. É um dos lugares mais lindos do mundo para contemplar o amor da civilização aos livros impressos. Prédio lindo por fora e impactante por dentro. Fui muitas vezes. Entram e saem pessoas, fotografam... e vão embora. Virou um imenso wall paper ou um fundo de selfie... Sim, há leitores, claro, porém em número muito menor. Não queimamos mais bibliotecas, apenas não ligamos muito para elas, ao passo que postamos e postamos e postamos.

Curiosamente, nas mãos de todos nós, estão bibliotecas inteiras, as maiores que o mundo já viu. Cada celular acessa edições completas e de domínio público da “Divina Comédia” ou de qualquer obra de Machado de Assis. Tudo o que já foi escrito e impresso pode ser verificado ao toque de um dedo. A memória de um bom celular e o auxílio da Nuvem, essa entidade nova e onisciente, transformam cada proprietário de um smartphone em um possuidor do saber universal para preencher muitas vidas.

Temos tudo ao alcance do indicador. Como o Deus barbudo do teto da Capela Sistina, estendo meu braço e surge não um novo Adão, todavia toda a humanidade e seu saber. Amparado pelos anjos chamados conexão, serafins de bites e querubins de memória, posso ler ou até ordenar que minha biblioteca manual fale por si, caso meus olhos fiquem exauridos. Nunca conseguimos tanto. Jamais fomos tão longe. Resta uma melancolia como se cumpríssemos o poema de T. S. Eliot de um mundo que expira “não com uma explosão, mas com um suspiro”. Talvez seja uma notificação de que há mensagem, mais do que um poético suspiro. Querida leitora e estimado leitor: como anda sua biblioteca?

PS: Dia 30 de setembro é dia de São Jerônimo, padroeiro de tradutores, secretários e... de todas as bibliotecárias e bibliotecários do mundo.

Leandro Karnal é historiador, escritor e membro da Academia Paulista de Letras.