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Deleite dionisíaco

Artigo escrito por Lia Canineu

22 de Setembro de 2021 às 00:01
Cruzeiro do Sul [email protected]
Lia Canineu.
Lia Canineu. (Crédito: Divulgação)

Ainda é difícil de assimilar. O que vivi essa semana carrega tanto estofo emocional que justificaria mais algumas crises de labirintite. Embora acredite impossível descrever, aqui tenho para vocês um parecer apaixonado sobre o retorno do teatro, mais especificamente o musical, sob o prisma de quem estava lá em cima pisando no santo tablado.

Vou começar de antes, recordando os dias que anteciparam o nobre evento.

Estávamos naquela loucura boa dos ajustes de última hora, frenéticos por “arredondar” o espetáculo e estrear logo -- um grande musical usualmente conta com dois meses de ensaios até a estreia para o grande público. Neste período em que os atores ensaiam em estúdios, o palco é ocupado pela montagem de cenário e toda a produção técnica. Somente na semana que antecede a estreia os atores encontram o palco. Um momento muitíssimo esperado, diga-se de passagem.

A reta final na sala de ensaio é um tanto delicada para o ator, o qual se encontra numa linha tênue entre a constância e o excesso. Explico: quando um ator de palco permanece muito tempo numa sala de ensaio ele tende começar a passar do ponto. Somos “bichos de palco”, buscamos somar a personagem conforme repetimos e, como nem toda adição é necessária, inevitavelmente precisamos subir ao palco, pois aí saciamos e o possível excesso dá lugar a constância.

Muito feito, é chegada a hora, o linóleo dá lugar ao tablado e o teatro entra em cena! Até que enfim combinaríamos o nosso trabalho ao dos peruqueiros, camareiros, maquinistas, gerentes e chefes de palco, contra-regras, iluminadores, músicos, bonequeiros, visagistas, cenógrafos, técnicos de som, microfonistas, produtores e muitos outros que já estavam lá “levantando” o espetáculo enquanto ensaiávamos em outro espaço. Vale salientar que são mais de 250 profissionais empregados para produzir um musical desta magnitude. Depois de alguns poucos dias de ensaios técnicos juntando todas as peças deste grande quebra-cabeça, prontos ou não, era o momento de abrir as cortinas e receber o público.

O processo de preparação para essa tão esperada reunião começa no camarim. Preparamos o cabelo, o rosto para a maquiagem, colocamos o microfone, a peruca, vestimos o figurino. Primeiro sinal. Subimos ao palco, testamos o microfone, pegamos os adereços, ouvimos a plateia procurando seus assentos. Segundo sinal. Desejos de bom show, troca de olhares eufóricos, aquecimentos, orações, rituais individuais. Terceiro sinal. Todos em posição, o maestro dá o levare e a orquestra toca o primeiro acorde e uma onda poderosa de calor e energia vem a nosso encontro enquanto aquelas notas soam pela primeira vez aos ouvidos daquele publico. Embora conheçamos o repertório, foi como escutar pela primeira vez aquele overture. De fato, a música era música para nossos ouvidos. Estávamos de volta! Finalmente. Quanta emoção, os olhos derramavam lágrimas, tínhamos poucos segundos para nos restaurar e iniciar o show sem borrar a maquiagem!

O cenário aliado à luz e a música ao canto, respectivamente, ambientam e começam a narrar a história. Os atores entram em cena e novamente a ficha cai quando os olhos reencontraram os focos de luz, aqueles que ofuscam a vista e fazem a plateia sumir. Aquele momento que sentimos o público embora não o enxerguemos. É uma sensação que, imagino, seja próxima do flutuar. Estamos entregues, voluntariamente a mercê da casa.

Um terceiro momento catártico foi ouvir os primeiros aplausos. Eles estão lá realmente. Estão vivos, ativos, vendo, ouvindo e participando! Depois de dezoito meses o público veio! Terminamos o número de abertura abundantes, cheios de sensações, transbordantes de emoção. E assim o show seguiu.

O espetáculo passou tão rápido, mas, cada número foi vivido e realizado como se fosse a primeira vez e como se fosse a última também, se é que me entende.

No momento do agradecimento mais uma comoção. A luz da plateia se acendeu e pudemos testemunhar aquela plateia cheia! Lá estava ela calorosa, agradecida, emocionada! Arrebatada de algo há tanto abstido. Foi absolutamente sublime. Há tanto o que descrever, no entanto me faltam palavras e sobram lembranças vivas de cada segundo daquele dia.

O teatro é milenar. O teatro é refúgio dos aflitos desde muito mais tempo que possamos imaginar. O teatro é fonte de renda para muitos e fonte de alegria para muitos mais. O teatro já enfrentou muitas pandemias. O teatro acalmou plateias que viviam guerras. O teatro educou multidões. O teatro registrou história. O teatro sobreviveu a muito. O teatro não se calou, se reinventou e resistiu.

Dionísio festeja.

O teatro está de volta, volte ao teatro!

Lia Canineu é artista.