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Cristianismo, igreja e democracia

Artigo escrito por Dom Julio Endi Akamine

12 de Setembro de 2021 às 00:01
Cruzeiro do Sul [email protected]
Dom Julio Endi Akamine
Dom Julio Endi Akamine (Crédito: Manuel Garcia (11/7/2019))

A democracia é posta em relação quase exclusiva com a antiga Grécia, mas essa exclusividade ignora o fato de que nela a votação estava restrita a um quarto da população, os homens livres. Além disso, na democracia grega o ideal era colocado sobretudo no rei filósofo que podia conhecer o bem comum político melhor do que a massa cega. Por fim, a maioria dos filósofos e políticos gregos preferiam a monarquia ou a aristocracia.

O que entre os gregos era reservado a uma elite limitada foi radicalmente democratizado no cristianismo: a dignidade de toda pessoa humana independente de sua origem e nascimento. Foi com o cristianismo que a pessoa humana foi reconhecida como elemento fundamental da democracia. A dignidade humana se tornou assim o fundamento ético para a democratização da participação política.

A razão última da dignidade humana está radicada na relação que toda pessoa tem com Deus. Isso preserva o ser humano do domínio de qualquer sistema ou comunidade política. Foi o cristianismo que libertou a pessoa humana da absoluta subordinação à comunidade política.

A democracia moderna se baseia nos direitos humanos, os quais garantem que a vida humana não seja destruída e que minorias não sejam oprimidas por decisões arbitrárias de maiorias.

As atuais democracias já não se fundamentam no esforço de serem fiéis a Deus. Elas são laicas, ou seja, religiosamente neutras e se fundamentam na dignidade da pessoa e no direito da liberdade individual. Os governos atuais, no entanto, não podem renunciar aos pressupostos morais. Ora, um ceticismo de princípio que declara impossível o conhecimento último de verdade e de valores é incompatível com uma democracia humana.

O reconhecimento da dignidade humana de toda pessoa é também o que está na base de todo poder político. A pessoa humana é o valor basilar da comunidade política e por isso ela é, em consequência, a única legitimação para o poder político. Dessa forma o poder político de quem foi eleito não pode ser a arbitrariedade individual de quem governa. Ele não pode agir e decidir como se tivesse que responder somente a si mesmo.

A Igreja defende a democracia porque é o ordenamento no qual os princípios cristãos são mais bem salvaguardados. Na sua ética política, a Igreja não defende nenhuma opinião religiosa especial. Ela defende os princípios gerais do Estado racionalmente fundados. De modo concreto defende tudo o que é “verdadeiro, nobre, justo, puro, amável, honroso, virtuoso ou que de algum modo mereça louvor” (Fl 4,8).

A Igreja deseja a máxima aplicação dos valores fundamentais, entre os quais a liberdade de crença e de consciência. Ao mesmo tempo, ela cuida para que a maioria não pense, não atue nem decida contra os valores humanos. Por isso ela atua decididamente no diálogo social para persuadir os cidadãos a sempre agir à luz de valores e princípios humanos. Por tudo isso, ao defender a democracia, os cristãos não estão prejudicando a si mesmos.

A política é a arte e a capacidade de negociar, de fazer cooperar diferentes pessoas e instituições, de unir diversos atores sociais nas coisas comuns, de estabelecer e obter objetivos e empreendimentos para o bem de todos. Um político é sobretudo uma pessoa da ação civil e pública que procura transmitir a arte de viver junto com outros e de se encontrar com os diferentes para construir uma sociedade mais humana e justa. Nesse sentido, é lamentável o que estamos vendo atualmente: em vez de concórdia e negociação, a contraposição e a polarização; em vez da colaboração dos diferentes, o acirramento dessas mesmas diferenças; em vez da busca do que é comum, a insistência obsessiva com o que divide. É lamentável que alguns políticos, em vez de construírem pontes, tenham construído muros que agora são transformados em trincheiras para nelas insuflar a hostilidade entre grupos, partidos, instituições e pessoas. Mau exemplo de política!

O papa nos adverte que “a polarização política usa da estratégia de exasperar e exacerbar para negar ao outro o direito de existir, a de ridicularizar os outros, insinuar suspeitas falsas sobre o inimigo. A polarização manipula as justas causas para vencer o adversário. Fazendo isso torna impossível colher os fragmentos de verdade e dos valores presentes no outros e assim a nossa sociedade se empobrece e é dominada pela força do mais prepotente. A polarização política lança mão da desqualificação dos outros e manipula o debate para retroalimentar o ambiente de contraposição e discórdia” (cf. Fratelli Tutti 15-17).

É sobretudo lamentável o que vivemos ao interno da Igreja: qualquer posicionamento ou declaração é imediatamente classificada como posição inimiga a ser atacada com toda a virulência e desrespeito. O clima político de antagonismo exacerbado penetrou em nossas comunidades e famílias. Alguns de nossos fiéis vivem na lógica da contraposição de uma política de combate quando não de guerra, obrigam todos a viver em trincheiras de onde podem desferir golpes para destruir o adversário.

É preciso abandonar as trincheiras e construir mais pontes! É urgente “adotar a cultura do diálogo como caminho; a colaboração comum como conduta; o conhecimento mútuo como método e critério” (FRANCISCO AHMAD AL-TAYYEB, Documento sobre a fraternidade humana em prol da paz mundial e da convivência comum (Abu Dhabi - 4 de fevereiro de 2019).

Dom Julio Endi Akamine é arcebispo metropolitano da Arquidiocese de Sorocaba.