O cafezinho de Rubem Braga
Artigo escrito por Leandro Karnal
O capixaba Rubem Braga nasceu em 1913. Cursou Direito em Minas, porém, logo foi atraído para a carreira de jornalista. Ainda adolescente, já publicava textos no jornal da sua cidade, Cachoeiro do Itapemirim. A cidade sempre seria lembrada pelo filho mais conhecido, Roberto Carlos, mas, além de Rubem (e seu irmão Newton), também são cidadãos ilustres de lá os controversos Carlos Imperial e Luz del Fuego.
Rubem Braga foi preso pelo Estado Novo. Libertado, foi cobrir a ação brasileira na Itália. A carreira profissional de Rubem incluiu escrever em jornais e revistas, traduzir, adaptar histórias, fazer parte do serviço diplomático brasileiro. Em outras palavras: um escritor deve fazer muitas coisas para sobreviver. Cada experiência de Rubem acrescentava dados aos seus textos: a paisagem do Chile, as pontes de Paris, uma aventura amorosa no exterior...
Rubem Braga fez muitas coisas. Em uma, ao menos, ele atingiu a imortalidade: a crônica. Havia uma boa tradição de escritores de jornais e de revistas. Na geração anterior, temos o exemplo fecundo do carioquíssimo João do Rio (1881 - 1921). De alguma forma, todos os cronistas herdavam a tradição de Machado de Assis: o estilo com humor, a frase curta, o olhar agudo e uma lição de estilo a cada texto. Com Rubem Braga, cada vez mais, ao longo da sua carreira, firmou-se a diferença do articulista (que emitia uma opinião, quase sempre política) e do cronista, que elegia coisas do cotidiano e dava-lhes uma dimensão trabalhada de universo em miniatura.
Antonio Candido (1918 - 2017) defendeu a crônica pela leveza e proximidade com o leitor. Porém, de muitas formas, pespegou uma classificação que seguiria o gênero por muito tempo: “Não se imagina uma literatura feita de grandes cronistas, que lhe dessem o brilho universal dos grandes romancistas, dramaturgos e poetas. Nem se pensaria em atribuir o Prêmio Nobel a um cronista, por melhor que fosse. Portanto, parece mesmo que a crônica é um gênero menor”. O crítico faz elogios entremeados de suspeição aos “temas ligeiros” dos cronistas.
Sim, comenta Candido, em um país de tradições bacharelescas, a crônica simplificou a linguagem e a tornou “natural”. Mas... gênero menor. Fico imaginando o que escreveria Antonio Candido se soubesse que o Nobel de Literatura, em 2016, não foi atribuído a um cronista, todavia a um escritor conhecido por fazer... letras de música: Bob Dylan. Pior: o compositor norte-americano decidiu que não era o caso de se deslocar até Estocolmo para receber o prêmio. Seria melhor terem escolhido um cronista?
No livro “As cem melhores crônicas brasileiras do século XX” (seleção de Joaquim Ferreira dos Santos, ed. Objetiva), o primeiro nome da capa é o de Rubem Braga. Se você juntar a esse volume outros dois (organização de Ítalo Moriconi -- “Os cem melhores poemas” e “Os cem melhores contos”), você terá uma leitura muito agradável para um período de descanso e de reflexão. Os organizadores fazem uma playlist muito útil para o leitor que deseja apenas obras-primas.
Fazer de cada gesto da vida uma capacidade lírica única; extrair beleza de uma luva esquecida por uma moça, de um lindo pé de álamo que ele indica ser a origem da palavra alameda, contar ao leitor uma cena do Marrocos (onde foi embaixador) ou uma memória das frutas colhidas na sua cobertura na rua Barão da Torre, em Ipanema: assim transcorrem as narrativas de Braga. Ele prestava muita atenção às mulheres e deixava transparecer sua sensibilidade ao encanto do feminino em termos intensos. Era bastante solitário, a julgar por seus textos e testemunho de amigos. As estações não se alternavam sem que o escritor sentisse cada novo tom no céu ou se o ar estava fino ou denso. Conversava com os porteiros e com os taxistas com entusiasmo. Dos diálogos com tudo e todos surgia uma reflexão quase constante. Avesso a muitos debates sobre limites de gêneros, quando pediam para dizer o que escrevia e o que era o seu fazer literário, ele definia, humorado: “Se não é aguda, é crônica”.
Comentando a irritação de um homem que aguarda em demasia um delegado que alegava ter ido tomar um cafezinho, acaba aconselhando: “Quando vier o amigo e quando vier o credor, e quando vier o parente, e quando vier a tristeza, e quando a morte vier, o recado será o mesmo: -- Ele disse que ia tomar um cafezinho... Podemos, ainda, deixar o chapéu. Devemos até comprar um chapéu especialmente para deixá-lo. Assim dirão: -- Ele foi tomar um café. Com certeza volta logo. O chapéu dele está aí... Ah! fujamos assim, sem drama, sem tristeza, fujamos assim. A vida é complicada demais. Gastamos muito pensamento, muito sentimento, muita palavra. O melhor é não estar. Quando vier a grande hora de nosso destino, nós teremos saído há uns cinco minutos para tomar um café. Vamos, vamos tomar um cafezinho”.
Rubem Braga faleceu no dia 19 de dezembro de 1990. Tinha acabado de entregar sua última crônica para o Estadão: “A paz de Santa Maria de Maricá”. Eu o tinha conhecido pela coleção do Ensino Fundamental: “Para Gostar de Ler” (ed. Ática). Foi um mestre que adorava pessoas nadando, mulheres e amendoeiras. Morreu? Talvez tenha saído para um cafezinho naquele balcão onde bebericam da rubiácea tantos homens e mulheres de talento. Gostaria, com esperança, de partilhar desse cafezinho.
Leandro Karnal é historiador, escritor e membro da Academia Paulista de Letras.