Os imbecis
Artigo escrito por Leandro Karnal
Um jovem casal passava horas lendo em conjunto. Encontravam grande prazer na tarefa. No meio de um dia frio de quase primavera, ele diz a ela:
-- Amor, você já leu Georges Bernanos?
-- O católico monarquista francês?
-- Sim. Acabei de ler esta frase dele: “A única diferença entre um otimista e um pessimista é que o primeiro é um imbecil feliz e o segundo é um imbecil triste”.
-- Que forte a ideia!
-- Forte mesmo. Mas eu me lembro de outra frase de um homem oposto, Bernard Shaw: “O pessimista? O homem que se ressente de todos os outros porque os acha tão desagradáveis como ele”.
-- Bernanos é um tipo de moralista e Shaw traz um pouco de psicanálise.
-- Uma ideia interessante, amor. Eu anotei aqui uma outra ideia, de Lewis Mumford: “Os conservadores são pessimistas em relação ao futuro e os otimistas, ao passado”. Assim, ele volta a Bernanos, pois imagina que todos temos um ponto negativo. Se sou um conservador, o futuro e até o presente podem ser tenebrosos.
Se sou um otimista, o que já ocorreu é inferior ao que pode ocorrer, logo, sou um pouco negativo com o vivido e ansioso pelo que virá.
-- Na semana passada, você deu uma palestra para professores de uma escola pública. Recordo-me do seu roteiro que lembrava a importância da educação e como cada professor poderia construir um futuro melhor para si, para os alunos e para o Brasil. Pense bem: você acha mesmo que o entusiasmo que você despertou vai durar? Que o sistema permitirá que saia algum empreendedor vitorioso dali?
-- Claro que acho! Não creio que ser empreendedor seja o caminho exclusivo da felicidade e único indicativo de mérito. Porém, o melhor caminho para que surjam boas lideranças comunitárias, empreendedores de todo tipo, pessoas realizadas e felizes é lembrar a todos que somos senhores do nosso destino.
-- Sim, amor, é a sua cara falar isso. Eu poderia dizer que você azeitou uma máquina de exclusão. Os professores ganham muito mal e os alunos naquela região sempre tiveram um ensino complicado que foi piorado pela pandemia. Que um ou outro possa fazer algo diferente faz parte do desvio-padrão de todo experimento.
Todavia, veja: ao dizer que os professores são maravilhosos e agentes do futuro, você substitui a dignidade material que eles não têm, o apoio que não chega e a realidade dura por uma espécie de ópio entusiasmado. Seu otimismo pode estar ajudando o mundo a permanecer como sempre esteve! Você virou um analgésico social.
-- Ah, querida, sempre trazendo uma nota de enxofre para meu paraíso... Retirar a capacidade de sonhar ou o horizonte de esperança de alguém é matar a alma. Seria como desistir de uma luta antes de ela começar por ser complicada. Pessimismo é covardia e quase uma preguiça mental.
-- Meu querido Cândido, disse ela sorrindo ao citar a personagem quase ingênua de Voltaire, “nunca sei se eu te beijo ou te esbofeteio quando você diz essas coisas...”, comentou a companheira com um olhar ambíguo. -- Sei que você tem a melhor intenção. Imagine que você dissesse algo oposto: “Meus queridos colegas professores: o sistema de ensino público foi montado para não funcionar. O salário é ruim, a estrutura física da escola é péssima, faltam coisas básicas e os alunos não têm condições de apoio em casa para transformar o conhecimento em alavanca de mudança. O maior objetivo aqui nesta escola é oferecer um treinamento mínimo de leitura e hábitos para que cada aluno vire um bom empacotador de super ou vendedor treinado de fast-food. Caso vocês discordem dessa máquina de perpetuação de desigualdades, não melhorem o cárcere: derrubem-no! Para construir uma nova escola, eu tenho de rejeitar a antiga. Não sejam melhores carcereiros, sejam libertadores e se libertem!” Isso seria algo útil a dizer.
-- Nossa, Cláudia, quanta amargura. Pedro estava assustado. Amava sua noiva, porém ficava espantado com o que considerava uma incapacidade de pensar com leveza o mundo. Pedro acreditava, genuinamente, naquilo que dizia nas palestras. A mulher desenvolvia um argumento que o tornava um ser perverso, alguém que animava presídios ou tocava como a banda do Titanic a afundar.
O casal já tinha conversado muitas vezes sobre o tema. Cláudia tinha postura radical: os alunos não deveriam ser enganados com promessas falsas. Eles estavam ali para garantir certa aparência de igualdade do Brasil com suas escolas públicas para “todos”. Porém, era um jogo viciado, com dados que nunca dariam o número vencedor a eles. A crise da educação não era um acidente, era um projeto, como tinha destacado Darcy Ribeiro há muitos anos. Tudo era montado para que a política e o capital continuassem com seu trajeto sem atritos. Claro, pensava ela, nosso Capitalismo não podia, hoje, contar com pessoas escravizadas analfabetas. Os funcionários tinham de saber enviar um e-mail, receber um vídeo ou até acessar o treinamento da lanchonete em um aplicativo. Os antigos escravizados tinham de ser minimamente alfabetizados. Aqui entrava a escola pública. Pedro, pensativo, não se cansava de incentivar alunos e professores.
Seria um imbecil alegre e sua noiva uma imbecil triste? Sua amada queria libertar todos de uma falsa promessa de melhoria e ele seria um dourador de venenos? Eis uma dúvida legítima para você, querida leitora e estimado leitor. Qual o seu imbecil preferido? Com ou sem esperança?
Leandro Karnal é historiador, escritor e membro da Academia Paulista de Letras.