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A etiqueta e Mick Jagger

Artigo escrito por Leandro Karnal

07 de Setembro de 2021 às 00:01
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Toca meu celular do nada. Não existe aviso prévio, mensagem ou pedido clássico: “Pode falar?”. Já sei que pode ser engano, ligação robótica oferecendo algo que eu não quero ou alguém mais velho. Ocorre o mesmo com vocês?

O telefone da minha infância estava em um móvel especial. Estava na sala, único, e, quando muito, convivia com uma extensão no quarto. Ao tocar, não sabíamos quem era, mas sempre corríamos para atender. Havia uma agenda ao lado dele com números e um bloco com lápis (nas casas prudentes, claro). Aprendemos a regra de gente educada: “Não se liga para a casa de alguém antes das dez horas da manhã e após as dez horas da noite”. Se o telefone tocasse na madrugada, a casa despertava com uma onda de ansiedade: era desgraça! Diga-se de passagem, receber telegrama também causava certa ansiedade. Hoje não desenvolverei todos os arcaísmos da minha memória. Vou me ater ao telefone.

Surgiram os telefones sem fio. Uma revolução! Podiam ser atendidos no sofá ou até no banheiro. Despontava a mobilidade e permanecia a regra pétrea dos horários.

Vivemos a era dos celulares onipresentes. Ligar para alguém sabendo que é a pessoa que atenderá é uma facilidade enorme de comunicação. Todavia, com smartphones, surge uma nova etiqueta: deve ser enviada uma mensagem prévia com a já referida pergunta sobre a disponibilidade de alguém. Tem lógica. Estou ao lado do aparelho, mas posso estar em outra atividade que não permite interrupção. Pior: posso estar usando um aplicativo de trânsito e, em um cruzamento com muitas opções e dúvidas, pode tocar o chamado de alguém que consegue ocultar a tela de que eu preciso. Ligar sem perguntar por mensagem prévia anterior pode ser, inclusive, risco de vida.

E onde entra Mick Jagger, nosso talentoso roqueiro e pai de um brasileiro? Ele fez e cantou a música “Old habits die hard”. Sim, velhos hábitos morrem com dificuldade. O cantor ainda torna poética a divisão entre sua consciência formada, metade por delírios e outra metade por mistérios (But i’m half delirious, Is too mysterious).

Pessoas mais velhas usualmente resistem a novas práticas. Jovens têm sua dose enorme de teimosia, porém, a cepa dura raramente atinge a área tecnológica. Parece que abrir mão de coisas com as quais estamos acostumados é reconhecer, de alguma forma, que estamos passando junto com o hábito. Dizem ser difícil ensinar um truque novo a um cachorro entrado em anos. De alguma forma, não apenas pode diminuir minha capacidade de ações novas, como, igualmente, resisto a elas porque manter o que eu sempre fiz garante que eu ainda tenha validade. “Ah, hoje em dia não se pode ligar mais para ninguém, tem de mandar texto, etc., etc.” A reclamação indica que lamentamos um mundo que passou e, com ele, partes expressivas de nós.

O choque de coisas novas com as tradições é permanente. Reclamar que os jovens de hoje não querem mais “nada com nada” indica que tais humanos impúberes não têm interesse nas coisas do meu mundo. Velhos avós desejando contar longas histórias de sua juventude a netinhos fixados em um novo jogo no seu iPhone.

Sim, a história da participação de vovô em algum evento da década de 1960 tem pouco apelo para a geração de adolescentes do século 21. Da mesma forma, o que vovô saberá sobre técnicas de jogos como “Free Fire” ou “Among Us”? Vovó ainda não se acostumou com Mick Jagger no cenário pop e a netinha já considera MC Fioti algo da estação passada. Na verdade, é o celular que possibilita ao neto ficar algumas horas na casa dos avós. Sem o analgésico do smartphone, o almoço de domingo poderia ser um desastre. Todos os jovens com os aparelhos em mãos compõem um cenário, reconheço, bizarro. Porém, é uma negociação: aceito estar com meu corpo no encontro familiar, apenas não cedo minha alma. Os adolescentes são Faustos estranhos que vendem o corpo e preservam o que imaginam imortal.

Meu pai tinha, na biblioteca do seu escritório, imensa coleção de livros de lombada vermelha onde se lia, solene, a palavra latina para a lei: Lex. Era uma coletânea de decisões de tribunais que, em algum momento, devem ter sido essenciais para o exercício jurídico. Um dia mostraram a ele um disco, um CD, com todas as leis e outros quejandos. Tudo o que ia até o teto do escritório estava ali resumido em um pequeno objeto circular. Era uma nova forma de armazenar que implicaria novos hábitos. Meu pai morreu afeito ao papel, resistente a tudo que fosse digital. Old habits...

Sim, podemos bater pé como meu pai fez. O mundo segue, indiferente aos nossos hábitos. Escrevo para um jornal que cada vez mais não é, a rigor, um jornal. Crescem os leitores que acessam o texto, algo distinto de abrir o caderno com o cheiro típico do papel e da tinta. Pula o dedo indicador que jamais se suja na matéria concreta e antiga das páginas do diário. Tudo passa, sempre. Menos Mick Jagger. Um dia, em meio a uma terra devastada, ele estará lá, tomando chá com Elizabeth II. Um terá ligado para o outro sem mandar mensagem prévia. Boa semana para todos!

Leandro Karnal é historiador, escritor e membro da Academia Paulista de Letras.