Buscar no Cruzeiro

Buscar

Criticar os vivos e elogiar os mortos

Artigo escrito por Dom Julio Endi Akamine

05 de Setembro de 2021 às 00:01
Cruzeiro do Sul [email protected]
Dom Julio Endi Akamine.
Dom Julio Endi Akamine. (Crédito: Manuel Garcia (11/7/2019))

É muito comum a gente elogiar uma pessoa depois que ela morreu, no entanto, enquanto viva, essa mesma foi objeto de nossa crítica impiedosa. Parece que só depois da morte das pessoas conseguimos enxergar o que há de bom nelas.

Por que isso acontece? Qual é a razão dessa nossa cegueira?

Se prestarmos atenção à história e à experiência cotidiana das relações humanas, constataremos que essa dificuldade esteve presente em todas as gerações e em todos os lugares. Ainda que não possamos afirmar isso de todos os elogios fúnebres, alguns deles testemunham as duas atitudes erradas constantes: o espírito de crítica negativa em relação aos vivos e a manipulação das palavras e ações dos falecidos para proveito próprio.

A história bíblica ilustra esses erros com muitos casos concretos.

Foi o que aconteceu com todos os profetas. Na época de Jesus, havia até mesmo o costume de erigir monumentos como forma de reparação das injustiças infligidas aos profetas. No entanto, enquanto vivos, os mesmos profetas foram perseguidos, rejeitados, criticados, maltratados e, por fim, mortos. Somente depois da morte deles, as pessoas reconheceram que os profetas estavam certos e que, de fato, transmitiram a Palavra de Deus (cf. Mt 17,10-13).

É fácil reconhecer a obra de um profeta depois de sua morte, especialmente depois de muito tempo. Isso porque, uma vez morto, é possível trazê-lo para perto de nossas próprias opiniões. Na verdade, muitos dos elogios aos que já morreram só o fazemos porque podemos manipular as suas palavras para reforçar nossas ideias e nosso comportamento. É muito mais difícil acolher o bem da pessoa na sua atualidade enquanto viva.

O que aconteceu com João Batista é mais um exemplo que confirma os erros da crítica negativa aos vivos e da manipulação dos falecidos. Segundo Jesus, João Batista é o Elias que veio para preparar a vinda do Messias, mas não foi reconhecido como tal e por isso foi morto.

Essa crítica de Jesus nos ensina que não devemos obrigar pessoa alguma a assumir a forma que queremos nós! Jesus não é um personagem de um passado distante. Ao contrário, como o Vivente, ele vem a nós de maneira desconcertante. Do mesmo modo, precisamos aprender a receber o bem das pessoas enquanto vivas.

Querer obrigar o Senhor a ter uma forma segundo os nossos gostos é ser como criança caprichosa que não entra no jogo dos companheiros: “Veio João, que não come nem bebe, e dizem: ‘Ele está com um demônio’. Veio o Filho do Homem, que come e bebe, e dizem: ‘É um comilão e beberrão, amigo de cobradores de impostos e de pecadores’” (Mt 11,16-19).

Além disso, João Batista e Jesus - e qualquer outra pessoa viva ou falecida - não devem ser objetos de nossa manipulação. Acolher Jesus significa encontrar-se com Ele, e não impor a Ele nossos interesses egoístas. Não é isso o que tem acontecido na atualidade? Jesus é usado como símbolo das causas mais diversas e contraditórias para justificar posicionamentos ideológicos e políticos à direita e à esquerda ou para reforçar ideias e doutrinas que nunca foram as dele.

É preciso combater o espírito de crítica negativa que nos faz rejeitar a interpelação dos vivos, que arranja desculpa para não se deixar mudar, que inventa pretextos para não aceitar o evangelho e igualmente a lógica manipuladora de transformar os falecidos em reforço de nossas opiniões e comportamento.

Que Deus nos liberte do espírito de crítica negativa e que nossos elogios não se limitem aos fúnebres.

Dom Julio Endi Akamine é arcebispo metropolitano da Arquidiocese de Sorocaba.