Saudade é um aperreio / Pra quem na vida gozou
É um grande saco cheio / Daquilo que já passou
(Patativa do Assaré)

Saudade, à primeira vista, parece coisa de poetas apaixonados, separados, enviuvados, abandonados e outros tantos “ados” pela musa amada. Parece, mas não é. Patativa do Assaré comparou as saudades a um saco cheio daquilo que já passou. Impossível não ligar o recipiente de muitas coisas ao enfado, chatice, monotonia que invadem a mente dos que perderam a zona de conforto em suas respectivas vidas e hábitos desde a chegada da Covid-19. Estamos todos de saco cheio.

Se você percorrer os jornais, e prestar atenção nos cronistas ou nos depoimentos de midiáticos entrevistados, encontrará curiosos tipos de saudades que obedecem à definição do repentista cearense. Um se diz saudoso do colarinho do chopp. Outro sente falta de encostar o umbigo no balcão de boteco enquanto joga conversa fora. Há quem sinta falta do shopping, das salas de cinema, do circo ou teatro. De sair sem máscara (e como tem juízo, não sai sem ela). Dos bailecos e dos bailões. De abraços. De um Brasil em paz e sem escândalos. Tudo saudade provisória. Deixarão de existir quando a pandemia for dominada.

Dou minha contribuição. Tenho também esse tipo de saudade carencial (exceto a do bar e do colarinho de espuma). Acrescento algumas. Ler jornais e correspondência sem borrifamento de álcool 70º. Cultos presenciais. Embora sermões on-line fortaleçam minha fé, a presença humana -- ainda que à distância profilática do contágio -- acrescenta calor humano aos cultos. Calor que a telinha não consegue traduzir.

No futebol é um pouco diferente. Se você tiver um pequeno grupo de amigos assistindo e torcendo, não precisa nem churrasco nem cerveja. O gol, a defesa do goleiro, o frango, o pênalti, o drible ou lançamento primoroso liberam endorfinas e adrenalina suficientes para vivas emoções. Não mais frequento estádios. Na TV, sinto falta daquele bando de loucos incentivando (ou xingando) os que vestem a pesada camisa do Glorioso Timão. Gente que transpira para ganhar caraminguás não aceita camisas enxutas de suor nos que auferem milhares de reais nos contratos. Neste 31 de agosto, o Corinthians comemorou o 111º aniversário de fundação. Contratou reforços de peso. Não vejo a hora de ver o Itaquerão (Neo Química Arena) lotado pela “torcida que possui um time”. Todos vacinados, espero.

Voltemos ao Antônio Gonçalves Silva (1909 -- 2002), nascido em Assaré (CE). Poeta e repentista, assumiu o nome da terra onde nasceu e por prenome um pássaro canoro comum no sertão nordestino.“Doutor Honoris Causa” por três universidades brasileiras, teve seus livros traduzidos em várias línguas e foi objeto de estudo na Cadeira Literatura Popular na Sorbonne (FR). Pobre, cego do olho direito (por sequela de sarampo) foi alfabetizado aos doze anos, em apenas alguns meses de vida escolar. Mas foi um craque na poesia, tanto na linguagem matuta quanto na erudita.

Saudades definitivas deixaram-nos amigos que partiram sem que os pudéssemos velar. Os mais recentes.

Dr. Armando Ferreira Duque. Ajudou-me em minha luta contra a úlcera duodenal que teimava em sangrar; deu-me tratamento humanizado e segurança por sua competência como gastrenterologista. Perdemos a luta, mas lutamos afinados.

Professor Nílson Rubens de Morais, vizinho, amigo, companheiro de trabalho e viagem. Semanalmente falávamos pelo telefone. Pensávamos diferente. Ecumênicos em matéria de fé, trocávamos ideias quando o assunto era política... e farpas quando era o futebol.

Edgard Steffen ([email protected]) é médico, escritor e membro da Academia Sorocabana de Letras (ASL).