Quatro janelas
Artigo escrito por Leandro Karnal
Há obras de arte por todos os lados. Enchem museus, casas, praças e livros. Impossível ver todas, conhecer sequer a maioria. Conhecimento sempre implica dizer o que deixaremos de ver e analisar, mais do que o que faremos de verdade como projeto estético. Você se casa com uma ou duas pessoas. Significa que deixou de ter a experiência conjugal com bilhões! Tudo é sempre a mesma escolha: o que deixarei de lado e jamais saberei?
Quadros são janelas. Eu olho por elas e o mundo delas me observa. Vejo e sou visto, percorro e sou perscrutado. A experiência de um quadro é como a de um texto: o livro também me lê. Se assim não for, vira aula chata e estetizante de arte. Exemplo? “O pintor não utilizou linhas definidas de desenho, fez sombras coloridas, definiu quase tudo pela luz e registrou um instantâneo rápido da vida e, por consequência, há a chance de ser impressionista.” A observação anterior é útil, como um dicionário o é para a literatura. É importante não confundir mestre Aurélio ou Houaiss com Fernando Pessoa ou Clarice Lispector. Gramáticas de estilos são ferramentas para entender estética e emoção, jamais a arte em si.
Imagine alguém dizer que ama boa comida e, indagado do motivo, cita como se deve glaçar, reduzir um molho ou distinguir entre crème brûlée e crema catalana... Quem ama chora com a arte e não classifica os pincéis quanto ao diâmetro. Arte é janela. Por ela, algo deve sair e outra coisa deve entrar. No caminho, o diálogo que muda a vida de alguém.
Quero falar de quatro quadros fundamentais na minha vida. Só usei o critério impacto subjetivo em mim. Logo, por favor, não cobrem: “Você não incluiu um pintor do Camboja ou com estrabismo convergente”. Toda escolha implica perda. A minha tem uma arbitrariedade insuperável: minha emoção.
Eu era adolescente quando vi pela primeira vez em uma enciclopédia de arte: “A Tempestade”, de Giorgione (L’Accademia, cerca de 1508). Não entendi. Talvez seja isso: escapou da compreensão lógica: uma mulher amamentando, um soldado, uma espécie de raio e uma cegonha branca empoleirada. Estranhamento pode ser um começo. Intrigado, passei a ler sobre ele. Há um cipoal de interpretações. O pintor veneziano deve rir da maioria Eu tinha 32 anos quando vi a obra ao vivo, na Itália. Já tinha dado aulas sobre Giorgione. Agora estava ali pequeno e denso, quase do tamanho da “Mona Lisa” de Leonardo. Já sonhei com o quadro. “A Tempestade” funciona como trufas: entendo quem não ame, é algo fora do espectro, diferente de uma obra ampla e alegre como as “Ninfeias” de Monet. Reforço: minha seleção é arbitrária.
O segundo é também da península genial: “Judite e Holofernes”, de Caravaggio (Palácio Barberini/Galeria Nacional de Arte Antiga, cerca de 1599). Aqui tudo é mais declarado: um general morrendo, uma heroína bíblica e uma criada ansiosa pela cabeça. Tenho uma experiência como professor de adolescentes: eles estão sonolentos com a aula sobre Barroco até eu mostrar esse quadro. Todos acordam. Descrevo a cena na Bíblia. Uns riem: “Deitou com o cara e cortou sua cabeça de manhã!”. Caravaggio continua causando efeito na Contrarreforma e na juventude da internet. É forte, é dramático, é arte em qualquer sentido do termo, da técnica à emoção. Giorgione seria Ingmar Bergman, Caravaggio é Quentin Tarantino.
Não esperem muita lógica. A terceira janela é uma linha de quadros. Falo dos murais Seagram, de Mark Rothko (em parte na Tate Gallery de Londres, a partir de 1958). Aqui não foi um amor fácil. Precisei ler um pouco, ir à Capela Rothko no Texas, dar um curso sobre o pintor e ver a peça “Vermelho”, com Antonio Fagundes e seu filho Bruno. Por fim, o que acendeu o rastilho da pólvora ainda úmida foi o livro “O Poder da Arte”, de Simon Schama, com o capítulo sobre os quadros.
Finalmente, fez-se a luz e, todas as vezes que vou a Londres, entro naquela sala escura da Tate e fico extático e estático. Não consigo explicar. São minhas janelas para a não razão e para o silêncio que atordoa. Se fosse uma experiência religiosa, Giorgione seria católico, Caravaggio, herege, e Rothko, budista.
A quarta janela será homenageada na Bienal de Veneza de 2022. Ela é anglo-mexicana: Leonora Carrington. O quadro “Offering” (e vários outros dela) está na West Dean College (West Sussex, pintado em 1957). Quase tudo simbólico e surreal, algo sombrio, como se fosse permitida que a estética se libertasse de vez da aliança com o belo. A vida repensada pela imaginação, “o leite dos sonhos”, mote da mostra de Veneza que a curadora Cecilia Alemani elegeu para a festa pós-pandemia (assim esperamos...). Nunca fui apaixonado pelo surrealismo. Leonora Carrington funcionou, para mim, como o cachorrinho que se dá a alguém que, até então, dizia ser avesso a mascotes e, ao acariciar o animal, se rende ao ato que contraria o discurso. Uma mulher genial no todo e no detalhe.
Descerrei quatro janelas da minha vida. Adverti: são aleatórias. O randômico é muito revelador. Quais seriam seus quatro quadros, querida leitora e estimado leitor? Quais janelas permitem que a luz entre na sua alma ou mostram sua pupila dilatando para um novo mundo? Faça sua lista! Boa semana com novas luzes!
Leandro Karnal é historiador, escritor, membro da Academia Paulista de Letras, autor de “A Coragem da Esperança”, entre outros.