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Do amor à segunda vista

Artigo escrito por Edgard Steffen

21 de Agosto de 2021 às 00:01
Cruzeiro do Sul [email protected]
(Crédito: REPRODUÇÃO / INTERNET)

Em seu coração o homem planeja o seu caminho, mas o
Senhor determina os seus passos. (Provérbios 16:9)

Ainda, e cada vez mais, gosto de você. De cara não gostei, confesso. Precisei de uma segunda vista. Tempo para perceber que você era trabalhadeira. Dormia e acordava cedo. Não caçoou quando eu engolia os “erres” finais e os acentuava no meio das palavras. Nem poderia. Você também falava com sotaque acaipirado. Religiosa, notei-a liberal (embora isso não importasse a um jovem meio afastado de igrejas).

Por simples, descontraída e sem frescuras cativou-me para sempre. Sei que amo, acho mais bonita e a compreendo cada vez mais. Fosse poeta, escreveria um poema neste nosso/seu aniversário.

Meus claros olhos acharam-na sombria. Considerei não me envolver. Faltar-lhe-iam condições aos meus ambiciosos projetos de vida.

Sua simplicidade foi, aos poucos, deixando-me confortável. A gente se costuma, pensei. Nossos pés se acomodam melhor nos sapatos velhos. Comecei perceber o grau de minha afeição quando, em férias, passei a sentir saudades de você. No regresso, o riso iluminava meu rosto ao avistá-la. Enlaçara meu sonho, sem sufocá-lo com exigências de elegância social ou financeira.

Não versejo, mas escrevo para que todos saibam como e quando a conheci. Eu, quase vinte anos. Você, quase trezentona.

No cair da noite em 16 de agosto de 1950, cochilando no banco de micro-ônibus, acordei na “curva da morte” do alto da Boa Vista; voltei a cochilar e só abri os olhos quando entramos na Padre Madureira. Solavanco, ao passar sob o pontilhão, despertou-me de vez. Pela janela, desfilaram a falta de pavimento na pista da avenida São Paulo, as palmeiras imperiais perfiladas, a estreita ponte sobre o rio, a íngreme subida da Souza Pereira em demanda à Álvaro Soares e ao ponto final no Largo do Mercado.

Vindo da clara Indaiatuba, achei você, Sorocaba, um pouco escura. Seus casarões e sobrados antigos dominavam a região central. Nas ruas, gente como as gentes de minha terra natal. Na praça, andanças ao som do serviço de alto-falantes. A urbe dormia cedo e cedo acordava aos chamados dos sinos das igrejas ou dos apitos das tecelagens. Na panfletagem dos muros, silenciosos gritos de liberdade ecoavam a mostrar terra de luta política. Libertem Fulano!(ou Fulana!). Chamavam-na cidade das indústrias e das escolas. Prometida e já autorizada sua primeira escola de nível superior. Manchester Paulista seu outro apelido. Gabinete de Leitura, Livraria Gutierrez, Estadão, OSE, Ciências & Letras, Centro Cultural Brasil-EEUU, rádios, jornais diários, teatro amador, esportes. Tudo ao alcance. Sorocaba Clube, União Recreativo, Circulo Italiano, Estrada e Independência a pleno vapor. Norberto Bastos (piano), Vicente Centenário (violino), Luiz Violão (voz), Ireno Hanser (voz), Cobrinha (sax) e as orquestras dos Irmãos Cavalheiro e Jazz Americano dominavam as noites e os bares. No Scarpa, Adrião Nunes forjava atletas, enquanto nadadores recordistas eram treinados por João Ribeiro e Teófilo Sanguinetto. Na quadra Bandeirantes, bom time de basquete. Logo substituído pelo Ginásio Municipal, onde Baby Barioni comandaria Campineiro, Reinaldo, Hélio Paschoalik, Sete Belo e Didi um dos melhores times de basquetebol do País. Futebol por conta de Estrada, Fortaleza, São Bento e C. A. Votorantim.

Vencida a barreira dos vestibulares, o aprendizado da Medicina prendeu-me à Terra Rasgada. Deliciosa prisão que me levou ao amor. Amor por você, Sorocaba! Sou homem de poucos títulos. Deles me orgulho. Sou cidadão sorocabano de direito. Recebi-o da Câmara Municipal, conforme indicação do combativo João Donizeti Silvestre (a quem devo gratidão).

Por Sorocaba, amor à segunda vista. À primeira vista, o que senti (e sinto) pela normalista morena que viria ser mãe de quatro sorocabanos, nossos filhos.

Nota do autor: Esta crônica (reescrita) me veio à mente na reunião da Academia Sorocabana de Letras comemorativa ao aniversário da cidade. Confrade, emocionado, descreveu sua chegada por aqui ainda menino. Jairo Valio Jr. exilado da amada Nascente das Águas para estudar na Terra Rasgada.

Edgard Steffen ([email protected]) é médico, escritor e membro da Academia Sorocabana de Letras (ASL)