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Filmes da Netflix: ‘No vale das sombras’ (Parte 3 de 4)

Artigo escrito por Nildo Benedetti

06 de Agosto de 2021 às 00:01
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Tommy Lee Jones (Hank) e Susan Sarandon (Joan): a dor da perda de dois filhos para a guerra.
Tommy Lee Jones (Hank) e Susan Sarandon (Joan): a dor da perda de dois filhos para a guerra. (Crédito: DIVULGAÇÃO)

No artigo da semana passada expus sumariamente as ideias de Freud sobre a psicologia que movimenta indivíduos e nações durante a guerra. O que escrevi aplica-se a qualquer tipo de guerra, seja entre Estados (normalmente feitas por meio de exércitos nacionais), sejam revoluções, terrorismo etc. Envolvem estupros, mortes de civis inocentes de todas as idades, pilhagens, tortura, homens-bomba e outras desgraças que só o gênio humano é capaz de criar quando se apresenta a oportunidade de manifestar livremente suas pulsões destrutivas.

Gostaria agora de tratar de um tipo especial de guerra, a guerra civil, em que grupos opostos dentro de um mesmo país se engajam em um conflito armado. A expressão “guerra civil” tem surgido como possibilidade em comentários políticos e manifestações públicas no Brasil. Daí a importância do assunto.

O caminho à guerra civil envolve vários fatores, mas dois são os principais: população civil armada e ação do líder na criação de condições apropriadas à detonação do conflito.

A proliferação de armas na população tira do Estado o monopólio da violência legítima, como a definiu Max Weber, e transfere ao cidadão a função de garantir sua própria segurança. Desse modo, coloca armas nas mãos dos indivíduos naturalmente mais predispostos a usar da violência em seus atritos com outros indivíduos. Hobbes chamou de “estado de natureza” à condição em que os homens vivem sem outra segurança senão a que lhes pode ser oferecida pela própria força e criatividade. É a condição de guerra de todos contra todos, que só é superada pela criação do Estado. Só existe civilização onde existe Estado. Portanto, quando o Estado arma o indivíduo, está confessando abertamente sua incapacidade de garantir a segurança que motivou a sua própria criação.

Como citei em artigos anteriores, Freud escreveu que o comportamento de um indivíduo passa por profundas transformações quando se engaja em um grupo. Alguns se integram ao grupo por astúcia política ou oportunismo, mas a maior parte adquire uma espécie de mente coletiva e fica mentalmente presa a um líder, por mais estúrdias que sejam suas palavras e ações. Com atitudes de hostilidade contra pessoas e instituições, o líder propicia a liberação das pulsões destrutivas inconscientes dos devotos fanáticos e as novas características sociais e mentais que estes exibem são as manifestações das pulsões que inconscientemente guardam como tendência. Tornam-se agressivos com quem pensa diferente. A idolatria a um líder belicoso e provocativo não é racional: ela se fundamenta na habilidade do mandante de liberar as pulsões destrutivas inconscientes dos seguidores. Ao lhes dar armas, o líder pode transformar ideias e palavras de fanáticos em ações de guerra civil - esse flagelo de consequências inimagináveis, como vemos na crueldade nos conflitos internos que ocorrem pelo mundo.

Não creio que uma guerra civil possa ocorrer no Brasil, pelo menos enquanto a Democracia, hoje cambaleante em alguns países, ainda se mantiver de pé e os três poderes da República continuarem independentes. Mas, como escreveu Harari em outro contexto, não devemos nunca subestimar a estupidez humana

Continua na próxima semana.

Esta série de artigos está incluída no projeto Cine Reflexão da Fundec

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