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Ao gosto de Augusto

Artigo escrito por Leandro Karnal

01 de Agosto de 2021 às 00:01
Cruzeiro do Sul [email protected]
(Crédito: REPRODUÇÃO / INTERNET)

Nós, aquarianos de fevereiro, temos uma discreta raiva de César e de Augusto. Os governantes romanos são a causa da retirada de dois dias do segundo mês do ano. Assim, passamos a aniversariar em uma “anomalia calendárica” (menos dias e ainda varia a cada quatro anos), para que os divinos políticos latinos pudessem ter os meses de julho e agosto anabolizados. Pior, além de provocar um excêntrico anual, o aumento de dias causa outro estupor: os dias que fazem falta no início do ano provocam a excentricidade de dois meses seguidos com 31 dias.

Para deixar mais claro aos que não compartilham desta birra. Julio César nasceu no quinto mês romano: quintilius. Quando morreu, o mês teve aumentado um dia e passou a ter 31. De onde saiu o dia? A querida leitora e o prezado leitor já intuem pelo primeiro parágrafo. O seguinte, sextilius, foi o mês da morte do príncipe Otávio, conhecido pelo título religioso de Augusto. Para que ele não habitasse um mês de modestos 30 dias, outra jornada foi retirada do meu sacrificado fevereiro. Os meses mudaram de nome para julho e agosto e, com o tempo, bem mais tarde, a virada de ano passou para o décimo mês romano: dezembro. Bode expiatório de tantas vaidades? Fevereiro, a vítima perfeita das veleidades mundanas. Ainda bem que os insanos governantes seguintes (Tibério, Calígula, Nero e outros) não entraram na mania de modificar o registro do ano, ou eu, que faço aniversário dia primeiro de fevereiro, estaria comemorando o fim do mês.

Quem viu o clássico “Cleópatra” com a linda Elizabeth Taylor, lembra-se bem da cena final. Marco Antônio foi derrotado pelo jovem Augusto. Refugia-se em Alexandria. Cleópatra chega a encontrar o vitorioso sobrinho-neto de César. O futuro príncipe do senado foi representado pelo inglês Roddy McDowall. O ator tinha 35 anos no filme e deveria interpretar um Otávio Augusto que, historicamente, tinha pouco menos tempo de vida. O roteiro cria um menino loiro, jeito de mimado, astuto politicamente e cruel a ponto de assassinar o filho de Cleópatra com seu tio-avô, Júlio César. O filme quer o ponto de vista da governante do Egito e não do homem que encerrou as guerras civis em Roma e iniciou um período de prosperidade e brilho cultural.

Quando analisa Augusto, John Kewis Gaddis destaca a aptidão do jovem aristocrata romano para conhecer seus limites. Exemplo? Péssimo comandante militar, Augusto indica pessoas mais capazes antes de combates. É uma capacidade sábia de delegar. Da mesma forma, o futuro governante do Império tinha colapsos nervosos e de saúde e desaparecia antes de grandes batalhas.

O livro do norte-americano Gaddis aproxima o célebre livro chinês de estratégia bélica de Sun Tzu (“A Arte da Guerra”) do governante latino. Em ambos, havia o choque entre princípios (gerais e válidos por muito tempo) com práticas (mutáveis por natureza). Como Sun Tzu, Augusto buscou coisas mais permanentes em meio ao mar de acontecimentos fáticos.

Ficamos fascinados com a habilidade do autor John Lewis Gaddis de pensar amplos recortes, desde o imperador Xerxes aos planos de Stalin. Como narrador, ele sabe sair do amplo para o detalhe pitoresco. Ao conhecer o corpo mumificado de Alexandre, o Grande, Otávio quebrou o nariz do herói macedônio. Dizem que foi acidente.

Vamos fugir do anedótico. Sabemos que Otávio corrigia suas falhas. Houve um lado frágil que resistiu a todas as iniciativas de melhoria: a própria família. “Augusto temia o erro, e, em certo sentido, acabou por errar: nunca conseguiu treinar um sucessor como Júlio César o havia treinado” (Gaddis, John Lewis. As Grandes Estratégias. Ed. Crítica. P. 95). Todas as escolhas iniciais para um sucessor foram malogradas. Terminou tendo de optar pela menos provável escolha: Tibério Cláudio Nero César.

Como ocorre a vários empresários e reis, o problema da sucessão foi um desafio. Ao falecer perto da cidade de Nápoles, a 19 de agosto do ano de 14, estava para completar 77 anos, idade bem avançada no mundo antigo. Orgulhoso, Otávio afirmava, na reta final, que tinha encontrado uma Roma de barro e a deixava de mármore. O sol de Augusto se apagava e a nuvem de Tibério, seu sucessor problemático, se aproximava.

O mês que nasci, fevereiro, foi assaltado pela memória de César e do seu sobrinho-neto. O ano em que vi a luz do mundo foi definido pelo nascimento de alguém no império de Augusto. Jesus estava no seio de Maria, quando uma ordem de recenseamento levou a família a Belém. O Messias era adolescente na data da morte do imperador. Augusto cercado de glórias e Jesus imerso no anonimato bíblico da vida entre 12 e 30 anos. A glória do governante mudou o mês de fevereiro. A glória de Jesus alterou o calendário. Mesmo assim, para que o Cristianismo pudesse ter a importância que obteve, teve de conquistar a Roma de Augusto. Hoje, no Vaticano, encontramos Francisco como Pontífice Máximo, o mesmo título de Augusto. Tudo parece sempre entrelaçado nos fios da História. Claro, o entrelaçamento é feito por nós, que interpretamos fatos, borra de café ou vísceras de aves. O drama do sentido e da profecia é sempre ter a marca do nosso desejo. Entramos em agosto! Força! Boa semana e bom semestre a todos.

Leandro Karnal é historiador, escritor, e membro da Academia Paulista de Letras.