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A dor do pavão e a nossa

Artigo escrito por Leandro Karnal

18 de Julho de 2021 às 00:01
Cruzeiro do Sul [email protected]
(Crédito: REPRODUÇÃO / INTERNET)

A cauda do pavão macho encanta a humanidade há milênios. São tons hipnóticos de verde e de azul brilhante, como se mil olhos abertos nos desafiassem. É um símbolo nacional da Índia. Conduz deuses como Escanda (Kartikeya) na tradição hindu. Foi gravado em tronos por toda a Ásia como símbolo da realeza. Mesmo na variante inteiramente branca, a majestade da ave impressiona. Em versão barroca intensa ou minimalista moderna, o pavão parece ter um impacto estético insuperável.

A beleza do animal, claro, será alvo de detratores. Sempre fomos duros com glórias alheias. Pavão virou símbolo do orgulho e da vaidade. O verbo “pavonear-se” implica ostentação. Pobre ave que não parece mais humilde ou cheia de soberba do que um simples pardal. Os animais são espelhos antropomórficos das nossas dores e anseios. A abelha é trabalhadora, a águia, corajosa, a raposa, astuta e o pavão... orgulhoso. Será?

Várias histórias ilustram bem o processo, quase todas atribuídas a Esopo. O pavão foi ligado à rainha dos deuses na Grécia, Hera (a Juno romana). Ao ouvir o canto mavioso do rouxinol, a ave foi se queixar a sua protetora. Como uma ave pequena tinha uma voz tão extraordinária? A lenda narra que a deusa desconversou: “Não se pode ter tudo!”. Em outra cena, ao reivindicar o título de rei das aves, o pavão teria invocado sua beleza. O corvo indagou se as garras do vaidoso emplumado seriam fortes e suficientes para defenderem o reino do ataque das águias? Ainda outra: ao ver a cauda orgulhosa do pavão aberta, a garça perguntou se suas asas eram fortes para que ele voasse no alto céu. O pavão, sabemos, voa como as galinhas: de forma curta e desajeitada. Nas três historietas, a mesma característica. Sim, reconhecemos sua beleza, porém há algo em você que pode ser atacado: a voz, os pés ou a força das asas. Como eu tenho algo em mim que pode lhe ser superior (sou um rouxinol, uma garça ou uma águia), reconheço que nós dois temos uma carência: o que você tem eu não tenho e, como defesa, eu me agarro ao que parece melhor em mim. Sem querer, as narrativas tornam-se não apenas fábulas morais (cuidado com a vaidade), porém, igualmente, psicanalíticas (sua crítica pode ser um espelho das suas carências).

Há uma narrativa na qual o pavão não é o único vilão soberbo. Trata de uma gralha que, invejando o brilho do bando colorido, pegou penas caídas e encheu o corpo com elas. Assim disfarçada, foi para o meio que almejava. Descoberta, foi bicada com fúria pelos pavões. Magoada e ferida, voltou ao bando das gralhas que a rejeitou, pois, agora, tinha se mostrado insatisfeita com a origem e incapaz de ascensão.

Quase sempre as narrativas tradicionais indicam a humildade como virtude suprema. Estar resignado com a posição de origem é indicado como preceito de felicidade. Talvez tenham sido compostas para aquietar ambiciosos, calar pessoas insatisfeitas ou invocar uma ordem preestabelecida e imutável. Pior: o desejo de mudança é ruim em si. Quem nasceu gralha assim morrerá! Esopo talvez não endossasse todos os ideais de empreendedorismo.

Sim, a cauda do pavão incomoda. Seria ele orgulhoso? Claro que se trata de uma projeção nossa. O leão não manda nos animais porque teria sido sagrado rei. Ele come animais menores como as zebras e foge dos maiores, como elefantes. A cobra não é traiçoeira nem o hipopótamo “gordo”. São animais bem adaptados a um meio e com os recursos que a evolução lhes conferiu. O ser humano projeta seus medos e anseios para os degraus zoológicos e vegetais que contempla. Lembro-me de um amigo dando um conselho de dieta e insistiu que eu evitasse o modelo do urso.

Por quê? Ele come doce (mel), frutas e proteína (peixes), logo, fica obeso. Imaginei se um urso fitness enfrentaria bem o rigoroso inverno ou a hibernação. Fosse Esopo e surgiria a fábula do enterro do urso que teve a vaidade de só tomar uma sopinha leve à noite para manter a forma esbelta.

Há, sim, muitas pessoas vaidosas como o pavão, ou... como imaginamos que o pavão seja. A questão do orgulho alheio é sempre incômoda. Desagradável quem proclama suas virtudes reais ou exageradas em microfones potentes. Porém, entendemos também que mesmo as virtudes de alguém que seja humilde nos incomodam. Uma vez, um amigo, sabendo que sou próximo da atriz Maria Fernanda Cândido, brincou que ela deveria ter um chulé terrível, porque ninguém poderia ser tão perfeita assim. Versão humana da crítica do corvo da lenda? Bem, parece que ela não tem e teremos de conviver com a beleza ou o talento de muita gente que ilumina, com sua luz própria, a nossa sombra. Para minha dor, o pavão que abre e exibe sua potência estética é insuportável. Reconheço que, sendo a cauda belíssima, o pavão que só a ostenta em lugares discretos também incomoda. Por fim, fazendo muita terapia, a simples existência do pavão pode ser causa de um enorme incômodo. O mundo não é justo. Bem, existe muita gente linda, brilhante, rica, agradável e, ainda por cima, carismática. Ao menos a mim, ave pequena, sozinho em meu quarto, esmagado pelo esplendor alheio, restou-me o pífio consolo: “A voz? Inferior à do rouxinol”. Melhor nem trazer à tona quem veio sem a plumagem do pavão, a voz do rouxinol, as asas da garça ou sequer a garra da águia. Que espectro político atenderá este ser? Boa semana.

Leandro Karnal é historiador, escritor e membro da Academia Paulista de Letras.