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Polvos que apostam ou ensinam

Artigo escrito por Edgard Steffen

10 de Julho de 2021 às 00:01
Cruzeiro do Sul [email protected]
(Crédito: REPRODUÇÃO / INTERNET)

Como é bonito ver a Sabedoria na obra de Deus!
Ricardo Buononni -- Projeto Compartilhar (You Tube)

Zanzei pela mídia impressa em busca de assunto para este nosso encontro semanal. Queria fugir de pandemia, vacinas, distanciamentos, cepeís, escaramuças e maldades políticas. Tive minha atenção despertada por um artigo e, nele, as palavras senciência e animais sencientes*. O Parlamento inglês quer saber se polvo, abelhas, minhocas e outros bichos sentem tristeza, alegria, ansiedade... porque Boris Jonhson (aquele 1º Ministro de cabelo despenteado) quer uma lei que reconheça a senciência dos animais no reino de SM Elizabeth II.

O artigo menciona “O Professor Polvo”, documentário ganhador do Oscar 2020. Eu me lembrava de um molusco cefalópode palpiteiro. Na Copa da África do Sul, o polvo Paul, morador do aquário marinho de Oberhausen (Alemanha), previu corretamente os resultados da seleção alemã no certame. Mas professor?!!... A pesquisa levou-me à Netflix. Tanto o palpiteiro da Copa Sul-africana como o pedagogo oscarizado são da espécie Octopus vulgaris conhecida desde os primórdios da sistemática zoológica.

Vale a pena assistir ao documentário. Exibe a interação entre um cineasta em crise e o bicho em seu habitat, num pedaço de mar junto ao Cabo das Tormentas. Lindas imagens. Justificam a frase ilustradora deste texto proferida por Ricardo Buononni.

O substantivo senciência e o adjetivo senciente não faziam parte de meu vocabulário. Sou do tempo em que, nas aulas de ciência, animais eram classificados em vertebrados e invertebrados, úteis ou nocivos, domésticos ou selvagens. O catecismo dos católicos e a escola dominical dos protestantes ensinavam que o Eterno dera ao homem a incumbência de nomear todos os seres viventes na terra ou nas águas. Está no 1º capítulo do Gênesis, aquele que escreve seis vezes “e viu (o Criador) que era bom” e, no último versículo, “Viu Deus que tudo quanto fizera era muito bom”. Aulas de História diziam que navegadores mudaram o qualificativo “das Tormentas” para “Boa Esperança” quando, a caminho das Índias, venceram o medo de contornar o continente africano.

Nos quintais e sítios de minha infância, a vida animal era exuberante. Permitido caçar e pescar o que se podia comer. Proibido matar, exceto animais “nocivos” (ratos, camundongos), predadores (gambás, principalmente) e peçonhentos (cobras, aranhas). Assisti a tratamentos, castrações, abates de frangos, porcos, bois. Adorava ler e reler material didático da Secretaria da Agricultura, Revista de Caça e Pesca (apelidada “Mentindo pelo Brasil”), Dicionário dos Animais do Brasil de Von Ihering. Animais exóticos somente nas gravuras de livros e nos filmes de Tarzã, Jim das Selvas e Clyde Beatty.

Histologia, Microbiologia e Parasitologia, na Faculdade de Medicina, me apresentaram ao mundo microscópico e ao abordamento científico dos fenômenos biológicos. Associados à vivência da infância e mocidade esses conhecimentos me habilitaram a ensinar Zoologia no cursinho preparatório aos vestibulares. Alguma dificuldade tive em Malacologia, estudo (logos) dos moluscos (macio tanto no grego “malakos”, como em “mollusca” no Latim). Grande parte desses seres vivem no habitat marinho. O mar ficava longe de onde eu morava. Lembro-me de que o sistema nervoso central desses animais é composto de um anel de gânglios de onde partem nervos para todo o corpo. Os polvos possuem um gânglio maior, semelhante ao encéfalo dos vertebrados; este gânglio cerebroide explicaria a “inteligência” exibida pela fêmea no documentário em epígrafe.

Para concluir. Criacionista ou evolucionista, não importa sua convicção, procure assistir ao documentário. Existem edens esparsos neste vasto mundo de Deus e dos homens. Paraísos que exigem inteligência e luta para preservá-los.

Só para pensar. Grandes árvores centenárias também são seres vivos. Sencientes frente ao fogo ou às motosserras...?

(*) Londres mostra preocupação com animais -- Estadão -- 07/07/2021, pag. A12

Edgard Steffen ([email protected]) é médico, escritor e membro da Academia Sorocabana de Letras (ASL).