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Filmes da Netflix: ‘Um homem de sorte’ (parte 2 de 2)

Artigo escrito por Nildo Benedetti

09 de Julho de 2021 às 00:01
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A solidária Jakobe (Katrine Greis-Rosenthal) apaixona-se pelo frívolo Peter (Esben Smed).
A solidária Jakobe (Katrine Greis-Rosenthal) apaixona-se pelo frívolo Peter (Esben Smed). (Crédito: DIVULGAÇÃO)

Na semana passada escrevi brevemente sobre as extraordinárias mudanças que ocorreram, em todos os campos da atividade humana, entre o final do século 19 e o começo do século 20. Tais transformações em tão curto período, provocaram, como era de esperar, o confronto entre velhas e novas concepções de mundo.

Peter é uma representação, uma espécie paradigma desse confronto. Sua formação é religiosa, mas renuncia à fé e lança-se de corpo e alma à tecnologia. Seu passado de camponês parece chamá-lo de volta, mas ele resiste. Por isso, parece sem rumo definido. Sua existência é uma luta permanente contra uma estrutura psicológica que o levou a dissipar o talento e a perder oportunidades que a vida lhe ofereceu. Por isso diz que algumas pessoas, como ele próprio, são atraídas para a catástrofe, como se apenas pudessem obter salvação na solidão e no desespero. Ele é seu próprio inimigo, como afirma o ministro religioso.

Em certo momento do filme, Jakobe lhe diz: “Talvez não saibas o que significa amar outra pessoa. Talvez porque conheças apenas o lado negativo da paixão: egocentrismo e arrogância.” Penso que essa seja a definição exata de Peter nas relações afetivas. Ele parece incapaz de amar e, em nenhum momento, confessa seu amor por uma mulher. Tira proveito da pobre garçonete Lisbeth, vivendo às suas custas e pedindo-lhe dinheiro para depois abandoná-la friamente (ela simplesmente desaparece de cena). Maneja as duas irmãs Salomon e a camponesa Inger. É indiferente à morte da mãe e sobre a morte do pai afirma que se sentiu, apenas libertado e absolvido.

Sob várias formas, a religião está presente no filme. A rigidez dos sacerdotes, a violência de Peter contra imagens de Cristo, o preconceito contra judeus que já aponta para o trágico destino que Hitler lhes destinaria três ou quatro décadas depois. Jakobe afirma que é impossível desenvolver a fraternidade quando um pastor, que poderia dar alguma palavra de conforto, fala apenas sobre apocalipse e inferno, enchendo o indivíduo de culpa. E Peter afirma que antes de procurar Deus, ele precisa encontrar a si mesmo, porque para quem encontra a si mesmo, Deus é supérfluo.

Se o leitor for cristão, poderá dar ao filme um sentido religioso. A arrogância e o orgulho são traços de caráter de Peter que acabam por leva-lo à ruína. São Tomás de Aquino considerou a soberba o pecado capital mais grave, a origem de todos os pecados. Independentemente de fé ou de crença, penso que, como outros preceitos religiosos, este encerra sabedoria. Peter vê-se obrigado a se rebaixar àqueles a quem havia ofendido e é forçado a exercer práticas degradantes para sobreviver.

O ser humano é débil e incorrigível descumpridor dos Mandamentos. O que torna Peter singular é que -- com exceção do quinto Mandamento -- ele descumpre todos os demais de forma consciente, ostensiva e sem remorso. Ele é incapaz de se afeiçoar, de perdoar ou de se desculpar por um ato lesivo praticado contra alguém. Sua desgraça se inicia quando, sem qualquer compaixão, descumpre o sexto Mandamento e rejeita a apaixonada Jakobe.

Na próxima semana escreverei sobre “Ethel e Ernest”

Esta série de artigos está incluída no projeto Cine Reflexão da Fundec

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