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O simbolismo da renúncia do ministro da Saúde do Reino Unido

Artigo escrito por Carmela Marcuzzo do Canto Cavalheiro

30 de Junho de 2021 às 00:01
Cruzeiro do Sul [email protected]
Carmela Marcuzzo do Canto Cavalheiro.
Carmela Marcuzzo do Canto Cavalheiro. (Crédito: ARQUIVO PESSOAL)

A renúncia do ministro da Saúde do Reino Unido, Matt Hancock, no último sábado dia 26 de junho, deve ser observada sob a perspectiva do direito internacional. O fato de Hancock ter sido alvo das atenções por ter sido flagrado em um caso extraconjugal com uma assessora tornou o exercício de sua função insustentável, como o próprio ministro reconheceu. A renúncia de autoridades ocorre mais em democracias consolidadas, como foi no Reino Unido, tendo em vista que existe uma melhor internalização da sociedade sobre noções que devem diferenciar a esfera pública da privada. O cargo público deve ser respeitado, pois atende uma finalidade de representatividade, logo ao mesclar interesses públicos e privados a essência de estar em um cargo público para defender e atender os interesses da população se desvanece e perde a razão de continuidade.

A especificidade do direito inglês contribui para entender a importância da moral no âmbito público. Não obstante o direito romano na extensão do Império Romano tenha influenciado no início da Idade Moderna, a Alemanha e os Países Baixos, ao se tratar de Reino Unido e Escandinávia a sua importância foi menor. No Reino Unido há a prevalência do direito consuetudinário baseado nos costumes, ou seja, a prática reiterada de determinados atos. Na realidade, simultaneamente conviviam dois direitos, o common law que é o direito comum consuetudinário, e o statute law que se trata do direito estatutário ou legislativo. O costume também é uma das fontes do direito internacional, além dos tratados internacionais.

Como enfatiza Noberto Bobbio, em seu livro “O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito”, o common law não possui origem romana, mas no direito consuetudinário tipicamente anglo-saxão, proveniente das relações sociais emanados pelos juízes nomeados pelo rei. No decorrer do tempo, esse direito passa a ser executado pelo Judiciário sendo elaborado por regras feitas pelos juízes para solucionar o caso concreto. A partir desses atos é criado o sistema do precedente obrigatório, chamado stare decisis que vincula a decisão de todos os outros tribunais. O stare decisis atualmente também é usado no direito no Brasil, por meio da súmula vinculante, da repercussão geral, e do novo Código de Processo Civil, a Lei no 13.105, de 16 de março de 2015, que conferiram maior importância para as decisões emanadas por tribunais superiores.

Diferentemente das monarquias absolutistas, a monarquia inglesa, graças a esse sistema, não detinha de poder ilimitado, sendo esse país o berço do liberalismo e do claro entendimento acerca dos limites jurídicos estatais. Embora existissem o common law e o statute law, o poder do rei e do parlamento sempre deveria ser limitado pelo common law, ou seja, o direito comum. Essa perspectiva histórica resguardou o Reino Unido de tendências autoritárias e absolutistas quando comparado a outros Estados. A importância da limitação do poder do soberano e a noção de uma moral pública em que público e privado não podem se misturar, representam valores de suma importância em uma sociedade evoluída.

Não à toa, em sociedades com uma moral pública escassamente desenvolvida é muito raro que uma autoridade renuncie ao cargo, pois se agarra ao poder acima de qualquer noção ética. No entanto, renunciar é um ato nobre quando se ocupa um cargo público que pressupõe agir em nome dos interesses do povo e esse pacto é quebrado. Obviamente, no caso do ministro da Saúde do Reino Unido, a oposição iria utilizar o episódio com interesses políticos, mas o caso deve ser analisado quando se compara com a realidade de outros países. Soluções autoritárias não contribuem para o amadurecimento de um povo, pois desconsideram a dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais como uma dimensão essencial para uma sociedade.

Carmela Marcuzzo do Canto Cavalheiro é professora na Universidade Federal do Pampa (Unipampa), câmpus Santana do Livramento (RS), área de Direito Internacional, e doutora pela Universidade de Leiden/Países Baixos.