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A língua

Artigo escrito por Leandro Karnal

27 de Junho de 2021 às 00:01
Cruzeiro do Sul [email protected]
(Crédito: REPRODUÇÃO / INTERNET )

“Prazer, Maria Filipa Frasão.” Assim ela se apresentava com a mão estendida, ao menos até os começos da pandemia. Óculos, cabelos presos, olhar vivo e sempre com um camafeu a unir os últimos botões da alvejada e impecável blusa branca. Fizera a licenciatura em Letras e um aperfeiçoamento acadêmico em Portugal. Herdeira de alguns bens, jamais se casou. De alguma forma, com liberdade poética, subiu ao altar com a língua portuguesa. Amava a gramática! Do imenso império lusófono, sua paixão, obsessão até, era a pronúncia correta. Claro, vibrava com as crases, amava conjugações, estudava ortografia e passava noites deleitada com os verbos anômalos. Figuras de linguagem? Maria Filipa tremia de emoção. Concordância verbo-nominal? Era possível ver um revirar de olhos nela que indicava um prazer secreto. Regência verbal? O coração saía da bradicardia e andava a galope pelos campos encantados da língua materna. Todavia, ela e o mundo sabiam: a pronúncia correta era seu universo.

Maria Filipa buscava as delícias de ortoepia, a maneira exata e formal de dizer cada palavra da língua de Camões. Administrava o que a gramática chama de prosódia, a análise da sílaba mais forte de cada termo. Abominava, profundamente (para cada leitora e leitor terem a dimensão), os desvios de quem dizia rúbrica, por exemplo. Quase gritava o correto: rubrica! Era educada, formal, porém sílaba tônica deslocada abalava seu mundo.

Era difícil assistir a algo na televisão. Parecia uma praga. Sempre existia uma apresentadora que brandia um “Prêmio Nóbel”. Ela desligava o aparelho imediatamente. Praguejava: “Malditos!”. Ligava para a emissora para insistir no Nobel, palavra oxítona. O mesmo com o termo recorde. Quando ouvia que as mortes atingiram novo “récorde”, estremecia e soltava um insulto: “De ignorância, talvez...”.

Ninguém escapava. Era mais forte do que ela. “A vizinha do 73 sofreu uma tentativa de estrupo”, comentava o síndico. “A língua de Machado também”, dizia devastada. Sem entender, o síndico espalhou que um tal de Machado era o estuprador, ou o estrupador.

O erro de colocar vogais em locais inexistentes era muito nacional. O desvio tinha nome antigo, sânscrito: suarabácti. Resolvendo a herança de uma tia, ligou para um escritório de Direito muito recomendado. A atendente comentou: “A senhora precisa de um adevogado”. Ela bateu o telefone! Seu ouvido era agredido sempre, seja ouvindo colegas e amigos ou vendo alguém fatiar uma “mortandela”. Para evitar a cacofonia, optou por comprar presunto. Preferia mudar o paladar a ouvir aquele N intragável. Era inflexível na sua natureza combativa. O gerente do banco, rapaz bem formado, pedia que ela colocasse a “rúbrica”? Ela trocava de agência. A moça do salão dizia que poderia reforçar a “sombrancelha”? Ela ficava em silêncio, franzindo o objeto do ataque fonético. Sofria.

Uma prima indicou uma palestra. Foram ambas, um pouco antes do fechamento geral provocado pela pandemia. O orador da noite? Um historiador de calva reluzente: Leandro Karnal. Diziam que era muito preocupado com o bom uso da língua, filho de latinista-jurista. Esperando passar uma noite de pronúncias escorreitas, acomodou-se na poltrona naquela noite.

“Sim”, ela comentou baixinho, “ele fala bem”. Achou a voz boa e as pronúncias corretas. Animou-se com um subjuntivo bem empregado. Percebeu que ocorria uma mesóclise adequada com o futuro do pretérito. Ficou visivelmente emocionada quando, na primeira pergunta, ele fez um jogo de palavras entre Cupido e cúpido. “Lindo”, sussurrou Maria Filipa. Sua imaginação bailava dançando de forma imaginária com Alexandre Herculano e Euclides da Cunha. A última flor do Lácio era regada e seu viço ressurgia.

Então, quando ela estava desarmada e feliz, embalada pelas sublimes formas gramaticais, o palestrante respondeu à pergunta de um sociólogo. A dúvida era sobre subsídios para a cultura. Leandro Karnal fez um pequeno arrazoado e encerrou que era dever do Estado dar “subsídios, do contrário, a cultura morreria de forma inexorável”. Era a frase final. Maria Filipa estava na ponta da cadeira para ouvir bem (e ela já tinha audição aguda e treinada). Foi um desastre! Não havia dúvida. Ele dissera “subzídio”, com som de Z, e não o correto, “subcídio” com som de C. Era uma estaca forte no coração sensível dela. Se não bastasse o crime de lesa-língua, o palestrante pronunciou o X de inexorável com som de CZ, evitando o correto com Z. Uma segunda estaca se aprofundava na especialista. O mundo desabava. Não havia ninguém mais em quem confiar. O público aplaudiu a palestra; ela ficou enterrada na poltrona, silenciosa.

A batalha estava perdida. Os agressores fonéticos triunfaram. Em um mês, vendeu tudo e se mudou para a Hungria. Lera que o idioma era não latino, estranho de todo à língua portuguesa. Lá, comunicando-se em inglês, ouvindo sons fora do tronco indo-europeu, ela estaria livre. “Que errassem em húngaro!” Enfim, Maria Filipa Frasão encontrou a paz em um apartamento com vista para o Danúbio. Seus vizinhos falavam e ela não compreendia um único som. Feliz, tomava chá todas as tardes ouvindo música, lendo, e jamais tendo de corrigir alguém. Pela manhã, ao sair para passear, o porteiro dizia algo que soava como “Jó reggelt kívánok”. Parecia ser uma saudação, pois ele dizia sorrindo. Ela agradecia com um aceno de cabeça e seguia com ouvidos intactos, observando a beleza magiar. Boa semana para quem fala português bem ou mal.

Leandro Karnal é historiador, escritor e membro da Academia Paulista de Letras.