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Curta-metragem ‘Compromisso da quinta-feira’

Artigo escrito por Nildo Benedetti

18 de Junho de 2021 às 00:01
Cruzeiro do Sul [email protected]
Com a idade, o protagonista apreendeu a sabedoria da poesia do iraniano Hafez.
Com a idade, o protagonista apreendeu a sabedoria da poesia do iraniano Hafez. (Crédito: DIVULGAÇÃO)

Esse curta-metragem iraniano, de dois minutos de duração, pode ser assistido no Youtube. Nele são recitados versos de amor do poeta persa Hafez, que viveu no século 14. Essa referência dá ao filme intensa atmosfera poética.

Em seu livro “Obra aberta”, Umberto Eco cria, em primeira pessoa, uma historieta de amor de 178 palavras e afirma que o poeta Francesco Petrarca, em três versos que somam 17 palavras, conseguiu expressar de modo muito mais intenso e completo a doçura do amor e a angústia da recordação da mulher amada contada na historieta.

Ousarei me apossar da ideia de Umberto Eco e também criar uma historieta, fazendo de conta que sou o protagonista do filme, porque também sou idoso e casado há 55 anos. E aqui vai uma advertência. O poeta T. S. Eliot escreveu que é na poesia que se encontra a expressão consciente das mais profundas emoções e sentimentos dos indivíduos, mas que tais sentimentos e emoções só podem ser captados na própria língua do autor. Portanto, como não falo iraniano, os sentimentos mais profundos do protagonista do filme me são estranhos e inatingíveis. Ainda assim, criarei minha historieta imaginando o que contaria se estivesse no seu lugar.

“Estou dirigindo meu carro, levando flores ao túmulo da mulher com quem fui casado durante muitos anos. Imagino que ela esteja comigo e que estamos recitando um poema de amor de Hafez que exprime os sentimentos que ainda nutro por ela. Ouço que me alerta sobre a proximidade do semáforo vermelho, como sempre fazia quando eu estava ao volante, certamente preocupada com a perda da habilidade de dirigir que a idade fatalmente traz. Paro o carro e vejo um casal que, aos berros, briga em um carro ao lado do meu. Fico tocado pelo rosto sombrio da menina de uns sete ou oito anos que, sentada no banco traseiro, aperta contra o peito uma boneca de pano, como a protegê-la da violência verbal dos pais. Em vão tento alegrá-la com momices. Um menino me pede doce. Dou-lhe um pacote dos que sempre carrego comigo para serem dados aos pedintes. A briga no carro ao lado continua e nesse momento me vem à mente um poema de Hafez que tenho recitado a mim mesmo nos últimos anos: “No Jardim do Paraíso, em vão procurarás a borda da fonte de Ruknabad e os caramanchões de Mosalla onde as rosas se entrelaçam”. Essas poucas estrofes, que encerram um apelo ao pleno desfrute da vida presente, fizeram-me lamentar os momentos dissipados em meu casamento com desentendimentos inúteis, com o exagero de minhas demonstrações de insatisfação, da minha intolerância com insignificâncias. Lastimo não ter tratado minha amada como um mimo precioso a ser velado e de não ter usufruído de todos os instantes da sua companhia. Imagino então que ela adivinhe meus pensamentos e sugira que entregue ao pai da menina as flores que eu destinaria a ela. O homem recebe as flores, reage carrancudo e parece não entender meu ato. Faço-lhe sinal que entregue as flores à esposa. Ele segue meu conselho, a briga arrefece e a menina sorri para mim.

Quando retomo a marcha do carro, recito a poesia de Hafez. Tenho certeza de que minha esposa, de onde estiver, me envia uma bênção por minha boa ação.”

Na próxima semana escreverei sobre “O filho”

Esta série de artigos está incluída no projeto Cine Reflexão da Fundec

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