O choro é livre, e a honra?
Artigo escrito por Leandro Karnal
A expressão é nova. Ao usá-la, queremos dizer que não damos a menor importância para sua dor. É uma expressão ruim, de constatação de uma vitória minha sobre você ou de constatação de um dado insuperável do real. “As coisas são assim, o choro é livre.”
Estamos na era de “lacrar” e de confundir conflito com confronto. “Lacrar” é gíria recente e, provavelmente, quem a usa nunca fechou um envelope clássico de carta com lacre derretido. Conflito é saudável, comporta mais de uma visão sobre a realidade que, por natureza, é múltipla. Ouvir o contraste de ideias, dar lugar ao contraditório e perceber que não sou o dossel sob o qual viaja a verdade em estado puro é muito saudável. O estado democrático de direito implica conflito. O confronto é a guerra declarada, a ideia de triunfar um argumento com a eliminação do adversário. É um duelo de pistolas à maneira antiga: um sairá morto, por vezes, ambos. Conflito ajuda a ampliar a riqueza dos argumentos; confronto é jogo bélico de narcisos. Conflito tem raízes filosóficas; confronto é termo militar e ecoa a violência da guerra.
Há poucas semanas, eu conversava com um amigo. Ele constatou que havia uma crítica, em tribunais superiores, à tese de “legítima defesa da honra”, utilizada por maridos que matam esposas que foram adúlteras ou que os maridos consideraram traidoras. Ao desferir tiros na sua esposa, o homem alegava, com seus advogados, que tinha tomado uma medida drástica porque seu bom nome, sua estima por si e sua posição no mundo (genericamente chamadas de honra) tinham sido lançados à lama pelo ato real ou imaginado daquela esposa.
Meu amigo leu a notícia e eu fiz um gesto de “até que enfim”! “Legítima defesa da honra é machismo com outro nome”, soltei com veemência na nossa conversa. Ele ficou em silêncio. Começou a argumentação com o mundo perigoso do “eu sou contra homicídio, mas...”. A partícula adversativa “mas” já me assustou. Quase sempre que alguém a emprega é para emitir uma barbaridade: “Eu não sou racista, mas...”; “Eu lamento o holocausto de seis milhões de judeus, mas”. Eu gelo quando ouço o “mas” empregado nessa construção retórica.
Meu amigo explicou que um homem que ama sua mulher foi traído. Ele se sente atacado no seu amor e na sua honra. O mundo dele desaba. Ser vítima de uma traição, adquirir a condição da palavra terrível de “traído” (ou insulto bem mais vulgar) é algo enlouquecedor. Perde-se o casamento, perde-se a confiança, perde-se o respeito dos outros homens e até, ele argumentava, de outras mulheres. Não existia chance de racionalizar o fato de que eu fui traído. É um xingamento terrível no trânsito e um fato ainda mais perturbador quando a ocasião confirma o palavrão pelo qual fomos tantas vezes insultados. Assim, ele dizia, o homem fica possuído de uma insanidade temporária e, se tiver uma arma disponível, é capaz disso. Ele viu que eu estava muito incomodado com o rumo da conversa.
Vida, eu dizia, é o valor maior, inclusive, infinitamente maior do que uma suposta honra. Sim, por vários motivos culturais, eu posso considerar minha honra atacada, porém, minha honra pode ser refeita ou até psicanalisada, a vida nunca será reposta. A vela apagada, como pensa Otelo ao matar a inocente Desdêmona, poderia ser acesa mais uma vez; a vida tirada da esposa jamais seria recolocada. Pior: as muitas infidelidades de muitos homens são relativizadas e ironizadas entre homens, compreendidas e inseridas em determinadas lógicas biologizantes. Canalhas adúlteros se desculpam entre si. Matar sua mulher por uma suposta ou real traição é reconhecer que minha honra tem raiz patriarcal. Que está centrada no meu desempenho sexual. Um homem, eu dizia, que mata porque foi traído já mostra que não possui a referida honra, pois não é dele, todavia pertence a outras/os que podem retirá-la quando desejam. Se a honra for minha, eu dizia inspirado no estoicismo, jamais será eliminada. Se eu for um homem honrado, nenhum poder pode eliminá-la de mim. Você, claro, pode perder a sua honra, ela é sua, a minha me pertence. Sua companheira e seu companheiro podem perder a própria dignidade, jamais colocarão a pique o castelo do seu valor.
Ele encerrou dizendo “o choro é livre...”. Argumentos filosóficos viraram choro. Tive vontade de fazer considerações pessoais sobre o casamento dele. Contive-me. O choro é livre, no entanto, eu não quero provocá-lo em ninguém. Ninguém nunca me trairá, só eu trairei a mim mesmo. O choro é livre e alheio. O que me pertence nunca poderá ser tirado. Ainda precisamos crescer muito no campo do conflito vs confronto. Enquanto isso não ocorrer, o choro será abundante...
Incomoda ser traído e perder a confiança em alguém; deveria ser ainda pior perder-se. É preciso ter uma esperança, acima de tudo, em si mesmo.
Leandro Karnal é historiador, escritor e membro da Academia Paulista de Letras.