Jesus desceu aos infernos
Artigo escrito por Dom Julio Endi Akamine
O que significa isso? Que Jesus foi condenado ao inferno? Talvez seja este o artigo da fé que mais se distanciou de nossa consciência atual. Por isso, para alguns, parece ser mais vantajoso eliminar de vez o seu enunciado, a fim de ficar livre de um tema estranho e de assimilação difícil para o nosso pensamento. Mas o que se ganha com essa atitude? O que adianta evitar as dificuldades e os aspectos obscuros da realidade? Em vez de escamotear a questão, não seria melhor aprender a ver que esse artigo da fé nos toca hoje bem de perto?
É preciso esclarecer, logo de início, que a expressão “infernos” não significa o estado de condenação, mas o que se exprime com a palavra hebraica “sheol” e com a grega “hades” (cf. At 2,31). Por isso, em vez de falar de “infernos”, a tradução vernácula preferiu a expressão “mansão dos mortos”.
Não se pode ignorar que a confissão da descida de Cristo à mansão dos mortos é antecedida pelo artigo: “Foi sepultado”. O que parece um simples pormenor é, porém, um dado cujo significado e eficácia diz respeito à nossa salvação. Jesus Cristo é o Verbo que se fez carne para assumir a condição humana e se fazer semelhante a nós em tudo, exceto no pecado (cf. Hb 4,15). Ele se fez realmente “um de nós” (cf. GS 22) e realiza a nossa salvação graças a uma admirável e profunda solidariedade conosco que o leva a experimentar o desenlace da vida humana que é a morte e a sepultura.
O artigo “desceu à mansão dos mortos” encontra o seu fundamento nas afirmações do NT (At 2,31; Rm 10,6-7; Ef 4,8-10). É uma confirmação de que a morte de Cristo foi uma morte real, não somente uma aparência. Durante três dias, passados entre o momento em que “espirou” (cf. Mc 15,37) e a ressurreição, Jesus experimentou o “estado de morte”, ou seja, a separação da alma e do corpo, no estado e na condição que é próprio de todos nós na morte. A alma de Cristo, separada do Seu corpo, foi glorificada em Deus, e o Seu o corpo jazia no sepulcro no estado de cadáver. Esse é o primeiro significado das palavras “desceu à mansão dos mortos”.
Uma vez que Jesus sofreu o estado de cadáver no corpo e logrou a plena glorificação celeste de Sua alma desde o momento da morte, a carta aos Hebreus pode descrever a obra de libertação dos justos por este evento da descida à mansão dos mortos: “Como os filhos têm em comum a carne e o sangue, também Jesus participou da mesma condição, para destruir, com a sua morte, aquele que tinha o poder da morte, isto é, o diabo. Assim libertou os que, por medo da morte, estavam a vida toda sujeitos à escravidão” (2,14-15). Mais explicita ainda é a Primeira Carta de S. Pedro: “Pois também aos mortos foi anunciado o Evangelho, para que, mesmo julgados à maneira humana na carne, eles pudessem viver segundo Deus no Espírito” (4,6).
A “descida aos infernos” constitui a última fase da missão do Messias, pois, com ela, a Palavra do Evangelho alcança a todos, inclusive as gerações que viveram antes do evento da Páscoa. Todos os que se salvam são tornados participantes da Redenção, mesmo os que morreram antes que acontecesse o evento histórico do sacrifício de Cristo no Gólgota. Pela “descida à mansão dos mortos” a graça justificadora de Cristo atinge não só a universalidade geográfica, mas sobretudo a universalidade temporal.
O artigo que fala da descida do Senhor aos infernos serve também para nos lembrar que a revelação de Deus não se compõe apenas de palavras de Deus, mas também de Seu silêncio. Deus não é somente a Palavra inteligível que vem ao nosso encontro, Ele é também aquele fundo sigiloso e inacessível, incompreendido e incompreensível que foge à nossa percepção. Certamente, no Cristianismo prevalece um primado do Logos, da palavra sobre o silêncio: Deus falou; Deus é Palavra. Nem por isso, porém, devemos esquecer a verdade do ocultamento permanente de Deus. Só quando O descobrirmos no silêncio, podemos nutrir a esperança de ouvir também as suas palavras que clamam no silêncio. A fé cristã expande sua luz para dentro da morte, do silêncio e do obscurecimento de Deus.
Com efeito, o que vem a ser morte? O que acontece quando alguém morre, tombando sob o destino da morte? Todos temos que reconhecer a nossa perplexidade diante desse problema. Ninguém sabe a resposta com exatidão, porque todos vivemos aquém da morte, não lhe tendo ainda provado o seu amargor.
Talvez se possa tentar uma aproximação a partir do grito de Jesus na cruz, grito no qual identificamos a essência do que vem a ser descida de Jesus aos infernos. Nessa derradeira prece revela-se, como elemento mais profundo de sua paixão, não uma dor física, mas a solidão radical, o completo abandono. Ora, nisto se manifesta o abismo da solidão do ser humano que, em seu âmago, está radicalmente sozinho na morte. Essa solidão, muitas vezes camuflada, sem deixar de constituir a verdadeira situação do homem na morte, denota simultaneamente o paradoxo mais profundo em relação à natureza do homem, que não pode nem quer estar sozinho, mas carece de companhia.
Portanto, confessar que Cristo “desceu aos infernos” significa receber a graça da Sua companhia na solidão da morte. Cristo é tão solidário a nós que nos acompanha na nossa solitária passagem do fim da vida. Um dia, todos nós deveremos descer à mansão dos mortos, mas, ao sofrermos a mais radical solidão, poderemos encontrar a mão firme e afetuosa daquele de nos acompanhou pelos vales de lágrimas desta vida e nos acompanhará também na passagem pelo abismo da morte.
Dom Julio Endi Akamine é arcebispo metropolitano da Arquidiocese de Sorocaba.