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Espelhos reais

Artigo escrito por Leandro Karnal

10 de Junho de 2021 às 00:01
Cruzeiro do Sul [email protected]
(Crédito: REPRODUÇÃO / INTERNET)

Pessoas famosas são sedutoras porque dialogam com o que nos falta, com aquilo que tememos ou aquilo com que nos identificamos. São espelhos do que há de melhor em nós e do nosso universo lôbrego. Curioso que o verbo especular envolve o conceito de buscar algo e o adjetivo especular é relativo a espelhos. A palavra que mostra uma busca, uma dúvida, uma especulação está associada à imagem que vemos refletida de nós e dos outros.

O interesse pela vida alheia é sempre especular. A coluna não é de psicanálise. Volto a um tema recorrente: a família real britânica. A recente entrevista do príncipe Harry e da sua esposa Meghan fez muito barulho. Diante de Oprah Winfrey, disseram que havia racismo na família real. O preconceito é algo sempre grave pela dor que provoca em suas vítimas. A entrevista despertou outras questões: devem ser debatidas, diante das câmeras, questões delicadas das famílias? Por um lado, alguns dirão que sim, pois o interesse da questão é amplo e o silêncio protege racistas. Por outro lado, haverá quem alegue que eles quebraram um código de confiança implícito.

O fantasma da Lady Di paira sobre os muros do palácio de Buckingham. Como o espectro do pai de Hamlet, ele lembra que algo ruim aconteceu e não foi resolvido ainda. Como se incorporam alteridades, pessoas diversas pelo comportamento ou pela melanina, no seio da família real? Questão mais ampla: como as famílias incorporam cunhadas e cunhados em seu seio? Tanto a rainha como vocês, queridas leitoras e estimados leitores, sabem que não é fácil.

A série “The Crown” inventou uma teoria. O príncipe Phillip comenta com sua esposa um diálogo que ouvira: A família Windsor sempre apresenta um duplo permanente entre irmãos. Qual seria? Um é monótono e cumpridor de deveres; outro é vivo e cheio de rompantes emotivos. Em resumo, um chato e um interessante seriam uma sina dinástica.

Vejamos. Eduardo VIII era um playboy inteligente e dinâmico. Virou rei e abdicou, segundo dizem, para ficar com sua amada que não descia no palato tradicional britânico. Ele seria o arlequim, o divertido e quebrador de regras. Seu irmão, George VI, era um homem tímido, gago, convencional e, segundo muitos, um zeloso cumpridor de deveres constitucionais e familiares. Homem da regra e da cena, pouco divertido, o mais novo era, para muitos, um chato.

Próxima geração: Elizabeth II é um monumento ao caráter fleumático, às regras e ao cumprimento de agendas. Ninguém a considera brilhante ou sedutora. É uma mulher abnegada e entregue à liturgia do cargo. Sua irmã, Margaret, condessa de Snowdon, era viva, muito divertida, quebradora de protocolos, bebia e fumava em grandes quantidades e morreu antes da irmã mais velha. Cumpre-se a sina da duplicidade Windsor.

Vamos para a geração seguinte. O filho mais velho do príncipe de Gales, William, duque de Cambridge, fará 39 anos daqui a pouco (21 de junho). Sóbrio, sorridente no seu quase eterno silêncio, mantém vida familiar tradicional e três lindos filhos. Seu irmão mais novo, Harry, envolveu-se em muitas controvérsias (drogas, fantasia de nazista, orgias em Las Vegas) e parece ser a plena continuidade da tradição do enfant terrible dos Windsor. Quando decidiu abandonar os deveres oficiais como membro da família real, o fato foi apelidado Megxit, pois parecia a muitos que era influência da esposa do duque de Sussex, Rachel Meghan Markle. Ressurgem Eva/Wallis Simpson/Yoko Ono...

Várias gerações de irmãos polarizados. Como em quase todas as famílias, os cargos parecem únicos: se um é o nerd, o posto está preenchido, o seguinte deve ser diferente. Coisa britânica? Se analisarmos Caim e Abel, Esaú e Jacó, Salomão e Absalão, veremos que o arquétipo nasceu bem antes do que em Londres e nas nossas casas. Irmãos são diferentes e, quando fazem suas escolhas amorosas, a diferença se aprofunda. Você já imaginou sua cunhada ou cunhado dando entrevista “sincerona” para a “TV Fama” ou “A tarde é sua”? Seria uma bomba, creio.

Volto à fama e aos espelhos iniciais. Deve existir um paralelo bizarro entre BBB e família real. Talvez, precisemos ver outras famílias como forma de psicanalisar a nossa ou de diminuir algumas dores. Do ponto de vista de Tolstoi, a nossa felicidade se parece com as fotos da rainha com filhos, netos e bisnetos sorrindo. A alegria coletiva nos eleva comunitariamente. A infelicidade é mais complexa. Voltando à ideia de Anna Karenina, a infelicidade é mais original. Ver famílias brigando em público pode ser nossa catarse libertadora: “Ufa, enfim, não é só com a minha”.

O medo do filho correto é que o pródigo retorne um dia. É pesado sorrir sempre, cumprir com todas as obrigações e ainda não poder revelar coisas. O outro partiu, parece ter levado vida mais interessante e ainda fala mal da gente? Pior, por que papai dá festa para ele e não para mim que carrego a pedra da normalidade? Agora, já não sei se falo da Bíblia, dos Windsors ou dos Teixeiras que estão lendo o jornal.

Cumprir papéis é um pouco chato, inclusive o papel de irmãos rebeldes. Será que um dia todos poderiam se olhar sem o peso da máscara? É preciso ter esperança no autoconhecimento e nunca se deixar tomar pela dor de Caim.

Leandro Karnal é historiador, escritor e membro da Academia Paulista de Letras.