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O impasse feliz

Artigo escrito por Leandro Karnal

30 de Maio de 2021 às 00:01
Cruzeiro do Sul [email protected]
(Crédito: REPRODUÇÃO / INTERNET)

O destino tem seus caprichos. Quero falar de um casal. Ele se chamava Félix. O nome vinha do latim, feliz ou afortunado. Como eu disse, o destino sorri ao formar casais. Félix achou a colega nova de faculdade muito bonita. “Como você se chama?”, foi a pergunta quando ele se sentiu encorajado. “Letícia”, ela respondeu, que significa feliz ou alegre. Ele sorriu e revelou o nome com a respectiva origem. Era muita felicidade. Passaram a namorar naquele mês de maio, o período afortunado do outono e dos casamentos.

A felicidade do casal era enorme: nos dois nomes e na relação. Viraram uma entidade: os amigos chamavam à dupla “Felícia” (Félix+Letícia), pois eram inseparáveis. Convidá-los era garantir o sucesso do evento: alegres, bonitos e otimistas. Há mais: contavam piadas em jogral e deliciavam as plateias. Ela começava, ele completava e a frase final era falada ao mesmo tempo. Felizes em si e afortunados no convívio. Seria sobre eles que o filósofo Byung-Chul Han teria feito o conceito de positividade tóxica? Bem, nada existia de tóxico nos dois. O feminino e o masculino afortunados em pura leveza graciosa: assim eram os risonhos que atendiam pelo apelido Felícia.

O filho nasceu dois anos depois. Pensaram muito em um nome. Não quiseram fugir da etimologia que unira ambos. Aliás, preferiram a origem à beleza sonora. O menino foi à pia batismal como Gaudêncio Magno: aquele que se alegra em grau maior. De onde surgira o nome inusitado? Tinham ouvido o cardeal anunciar quando da eleição do papa Francisco: “Annuntio vobis gaudium magnum; Habemus Papam”. Na maternidade, a dupla Felícia proclamou para a alegria máxima de todos, temos filho! Gaudium Magnum! Os avós se consolaram: ao menos nunca terá homônimos no banco ou causando problemas com a polícia. Surgia o primeiro e único Gaudêncio Magno da história, sem risco de xarás per omnia saecula saeculorum. Amém!

O homem feliz se juntou à mulher alegre e geraram o prazer máximo. Paramos por aí? De alguma forma sim, porque foi a oposição familiar que impediu que construíssem sua casa no Jardim Felicidade, zona norte de São Paulo. Todos supuseram que seria um pleonasmo, doçura em demasia. O casal bem-aventurado contentou-se em morar na rua Harmonia, na Vila Madalena. Antes, examinaram um apartamento na rua Pássaros e Flores. Entre a harmonia e uma rua com aves em meio a botões, optaram pela zona oeste mesmo. Claro, não deixaram de observar alguns imóveis no Paraíso, atraídos pelo nome da região. Tudo era perfeito na trindade familiar.

Chegamos a um impasse narrativo na nossa história, querida leitora e estimado leitor. A felicidade está excessiva. Aqueles que são acometidos pela doença da Diabetes Mellitus sofrem com o excesso de doçura do elóquio. Um homem feliz em si e no nome, associado a uma mulher igualmente afortunada e com um filho perfeito? Demais, cronista, demais.

Você tem razão. Sem problemas, não existe literatura. A superação da masculinidade tóxica impediria a existência da “Ilíada”. Um bom sistema de navegação levaria Ulisses em dias até sua casa. Elimine-se o homicídio e desaparece Agatha Christie. Fidelidade matrimonial absoluta? Lá se vão “Dom Casmurro” e “Madame Bovary” pelo ralo. Família funcional faria desaparecer grande parte da obra de Fiódor Dostoievski.

Mais: remédios controladores de depressão e de bipolaridade teriam alterado os quadros de Van Gogh. Como Alfred Hitchcock filmaria “Psicose” ou “Festim diabólico” em um mundo alegre e de paz? Para onde iriam nossa arte e nossa inteligência com boa psicanálise, remédios eficazes, famílias felizes e mais casais como Félix e Letícia? Sabemos que almas atormentadas são criativas. O que receberíamos de artistas tranquilos e sorridentes?

Para a tragédia grega, necessitamos de um desequilíbrio, uma desmedida que deslanche a trama. A virada, o turning point, é essencial para o interesse do leitor. A felicidade encerra, nunca começa o conto de fadas. “Foram felizes para sempre” antecede a palavra fim. Como encerrar uma crônica feliz?

Sim, eu posso matar os três em um acidente, ainda que isso consagrasse uma vida perfeita que nunca conheceria declínio. O filho assassinar os pais? A realidade já criou tal narrativa e é de péssimo gosto. Um lento declínio do amor? Escrever algo como um sexto ato para “Romeu e Julieta”? Já foi feito. Observar de camarote a devastação do tempo? J. B. Priestley (“O tempo e os Conways”) já pensou na ideia.

Reconheço: assassinatos, adultérios, ódios, guerras e decadência são excelente material literário. A felicidade empobrece narrativa. Todavia... preciso fechar a história dos três. Não queria matá-los. Criei carinho por eles.

Não podem ser felizes para sempre. Já sei! Félix acabou sendo eleito síndico do prédio da rua Harmonia e criou um grupo de WhatsApp no condomínio. Letícia começou a expressar opiniões políticas nas redes. E o filho? Gaudêncio (o Magno) se viciou em fazer Reels no Instagram. Assim, sem matá-los, criei o fim da felicidade. Inventei uma ocupação permanente e o surgimento de um estado acima do desespero de “Édipo Rei” e abaixo de qualquer plenitude gozosa. Transformei o homicídio da grande Agatha Christie em lenta agonia sem um cadáver. Esse é o verdadeiro homem cansado que Byung-Chul Han jamais concebeu: nunca desesperado e jamais satisfeito. Boa semana para as pessoas felizes e para todo mundo também.

Leandro Karnal é historiador, escritor e membro da Academia Paulista de Letras.