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Revendo o ‘Anjinho dos pés tortos’

Artigo escrito por Edgard Steffen

29 de Maio de 2021 às 00:01
Cruzeiro do Sul [email protected]
(Crédito: REPRODUÇÃO / INTERNET)

25 de maio -- Dia internacional da Adoção
criado para celebrar e fomentar o ato de adotar

O toque do telefone interrompeu meu almoço. Era interurbano. Partia de pequeno empresário. Desde que ele e esposa adotaram Sarah -- 5 anos loirinha de olhos claros -- frequentavam regularmente meu consultório para orientações de puericultura.

-- Doutor, posso perguntar uma coisa?

-- Pois não, que você quer?

-- Doutor, pé torto tem cura?

-- Tem. Por quê a pergunta?

-- Eu e minha esposa queremos adotar outra criança para fazer companhia à Sarah. Hoje nos ofereceram um menino recém-nascido... só que ele tem pé torto. Queremos que o senhor explique o que é isso.

Procurei orientá-lo. Tentei ser o mais didata possível. Transmiti rápidas noções sobre Pé Torto Congênito e possibilidades de correção quase sempre com bons resultados. Fisioterapia, engessamento ou cirurgia., dependendo do grau.

-- O que o senhor acha?

-- Meu caro, a decisão é sua.

Uma semana depois, levei um susto! O casal apareceu em meu consultório com um menino de cor negra, retinta. Ao examiná-lo, constatei que era todo torto! Braços, pernas, tronco. Caso típico de Artrogripose Múltipla Congênita, gravíssima má-formação dos ossos e articulações.

Diante daquele bebê, passou pela minha mente a “via crucis” que o jovem casal teria a percorrer para manter aquela adoção. Casal branco com filho negro é um prato cheio para o preconceito. Cansei de ver casais sucumbirem à rejeição por parte dos que os cercam; alguns, após dias ou semanas do propósito de adoção, devolverem seus bebês à instituição de origem.

No caso em pauta, além do preconceito, teriam de vencer a deficiência física gravíssima que acompanharia aquele menino pela vida afora. Com muito tato e rezando para que minhas palavras fossem brandas, mas verdadeiras e bem entendidas, expliquei ao casal o panorama que se descortinaria daquele dia em diante. Adotar é ato de amor, mas pode ser um ato complicado; adotar deficiente físico ou mental, mais difícil ainda. Há palpável risco de quebra da estabilidade emocional da família ou quebra do equilíbrio financeiro. Ou as duas coisas. Baseado em experiências anteriores, pensei estar frente a mais um projeto de adoção esboroando-se em fracasso.

A reação do casal conseguiu surpreender-me mais do que a artrogripose da criança. Após minhas ponderações, confabularam. Poucas palavras, mas olhares de cumplicidade diante das vicissitudes. Encerraram a conversa com a tomada de posição.

-- Doutor, estamos com esse nenê há alguns dias e já o amamos. Deus não nos deu filhos, mas nos permitiu adotar nossa filhinha sadia. Chegou a hora de agradecermos. Vamos criá-lo. Se ele chegar a andar, já nos daremos por satisfeitos.

Diante da firmeza do casal, resolvi dar mais um passo para ajudá-los. Liguei para médico ortopedista conhecido pela competência e fervor cristão. (Reescrevo esta história In Memoriam de dr. Eduardo Álvaro Vieira)

-- Eduardo, quero ver você fazer este menino andar!

-- Pode escrever, ele andará.

Anos de trabalho, internações, mais de vinte cirurgias. Enxertos de osso, de músculos, tendões. Fisioterapia e treinamentos. A promessa foi cumprida. Dr. Eduardo ligou-me quando o menino deu os primeiros passos. Passaram-se os anos. O pequeno anjo entortado tornou-se jovem de boa formação moral e companheiro do pai na empresa.

Esta história empresta o título ao primeiro livro que publiquei. No lançamento de “O anjinho dos pés tortos e outras histórias” meu coração exultou pela quantidade de amigos presentes. Entre eles, casal e três filhos -- duas mocinhas e seu irmão, todos adotados -- ampliaram meu júbilo e emoção. O rapaz adquiriu um exemplar e fez com que pais e irmãs o assinassem. Rabiscou linda dedicatória e entregou-me. O simpático afrodescendente usava botas especiais.

Se a pergunta “adotar uma criança com artrogripose” fosse feita olho no olho, minhas palavras talvez os dissuadissem. A mão de Deus fez com que a consulta fosse realizada pelo telefone. O amor fez o remanescente.

Edgard Steffen ([email protected]) é médico, escritor e membro da Academia Sorocabana de Letras (ASL).