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Solidão Original

Artigo escrito por Dom Julio Endi Akamine

23 de Maio de 2021 às 00:01
Cruzeiro do Sul [email protected]
Dom Julio Endi Akamine.
Dom Julio Endi Akamine. (Crédito: Manuel Garcia (11/7/2019))

Pecado original é o nome que damos a um pecado que é distinto do pecado pessoal. Nesse caso, o termo “pecado” é usado em sentido análogo: indica uma privação da graça de Deus sem que isso seja consequência do abuso da liberdade. O termo “original” é usado para ligar essa privação da graça ao nosso nascimento: o pecado pessoal de nossos pais feriu a natureza humana de tal modo que, ao nascer, herdamos uma natureza ferida.

O livro do Gênesis descreve o pecado original. Gostaria, no entanto, de chamar a atenção do leitor(a) para um outro tema igualmente importante para a antropologia cristã: a solidão original.

Essa solidão não é somente uma experiência do início; é algo que constitui a nossa natureza humana, tanto do homem quanto da mulher, por isso a chamamos de “solidão original”.

É significativo que o primeiro homem (adam), criado do “pó da terra”, só depois da criação da primeira mulher (ishá) seja definido como homem (ish). Assim, quando Deus pronuncia as palavras a respeito da solidão -- “Não é bom que o homem esteja só” (Gn 2,18) , refere-as à solidão do homem-adam enquanto tal, e não só à do varão. Como se pode notar, o contexto completo de Gn 2,18, relaciona a solidão original ao homem-adam (o ser humano) e não apenas ao do homem, causada pela falta da mulher.

Deus é apresentado como um pai que educa sem forçar os ritmos de amadurecimento do filho, mas, que ao mesmo tempo, não deixa de incentivar e favorecer esse amadurecimento. Deus já tinha decidido: “Vou providenciar um auxílio que lhe corresponda” (2,18). Antes, porém, de criar a mulher, Deus modelou do solo todos os animais selvagens e todas as aves do céu, e os trouxe ao homem para ver que nome lhes daria.

Ao dar nome, o homem exerce a sua vocação de dominar “sobre os peixes do mar, as aves do céu, os animais domésticos”. O homem como que toma posse do reino mineral, vegetal e animal. Dar nome é também organizar e determinar o lugar de cada ser criado em relação ao homem. Se Deus criou para pôr tudo a serviço do homem-adam, ao impor nomes aos animais, o ser humano toma consciência de sua primazia em relação a tudo e tudo ordena em função de sua soberania.

Depois de ter tomado consciência de sua ligação com os seres criados -- uma vez que é também criatura entre criaturas --, o homem percebe que se eleva sobre eles e se sente só. O homem designou com nomes todos os animais domésticos, todas as aves dos céus e todos os animais ferozes; contudo não encontrou para si uma auxiliar adequada (Gn 2,20).

Ao levar os animais formados do pó da terra ao homem, Deus como que desperta na sua consciência a questão da sua própria identidade. A solidão original tem um significado negativo: o ser humano é criatura em meio ao mundo material, mas, ao mesmo tempo, é mais do que a criação. O ser humano está só, diante de Deus e, ao mesmo tempo, é diverso e distinto de todas as criaturas. Com esta consciência, ele, em certo modo, sai para fora de si mesmo para se tornar ciente da peculiaridade do seu ser. A consciência de si é o que o torna um ser solitário.

A solidão original é o que possibilita ao ser humano se distinguir, de um lado, do Criador e, de outro, de todos outros seres. Com essa solidão original, o ser humano se afirma como “pessoa”: além de Deus, só ele é pessoa. Ele não é algo, mas alguém. É capaz de se conhecer, de se possuir e de se doar livremente a outra pessoa. É exatamente isso que o homem percebe quando não encontra entre os animais uma auxiliar que lhe corresponda: não há outra pessoa a quem possa se doar e dela receber uma resposta.

Dom Julio Endi Akamine é arcebispo metropolitano da Arquidiocese de Sorocaba.