Porque hoje é sábado
Artigo escrito por Edgard Steffen
O dia da criação / que tem por epígrafe as palavras da Bíblia./
Macho e fêmea os criou / Segundo Gênese versículo 27
(Vinícius de Moraes -- versos que abrem o poema O Dia da Criação)
Porque hoje é sábado devo preencher o honroso espaço que o Cruzeiro me concede há dezessete anos. Lembro Vinícius. “Hoje é sábado, amanhã é domingo / Não há nada como o tempo para passar.” Os noventa verões, o exercício da profissão médica e o incentivo dos que acompanham esta coluna tornaram fácil encontrar temas para transformá-los em crônicas ou artigos.
Quando me faltou o cotidiano, usei e abusei das reminiscências. Penso até que a hora de parar está próxima. O exílio domiciliar, condicionado pela pandemia que nos assola e assombra, agravou a falta de assunto. Vem à mente a sensação de haver esgotado a edição do que vale a pena e pode ser contado dentre o vivido. Volto ao Poetinha. “A vida vem em ondas, como mar.” Das ondas ficam apenas insights que conseguimos rever e contar sem estar deitado no freudiano divã do analista.
Cronista sem poesia, minhas escrevinhações geraram dois livros e a honraria de ocupar a cadeira nº 23 da Academia Sorocabana de Letras. O patrono é Vinícius de Moraes. Substituí o jornalista e poeta Bertoni Júnior -- encantador da noite sorocabana pela escolha de músicas e declamação de poemas na rádio local.
Meditava sobre a impossibilidade em fugir do que Moraes se referiu por “essa dura realidade. / Neste momento todos os bares estão repletos de homens vazios”. Atualizando os versos, bares e pancadões agrupam gente vazia de civilidade e de cuidados com a prevenção da Covid19. Se trocarmos o b pelo l encontraremos vacuidade na esperança dos que vivem dias sempre iguais. Permanecem confinados nos lares por idade, desemprego ou falta de vacina.
Nos versos que abrem “O dia da criação”, Vinícius de Moraes cita o versículo 27 do 2º capítulo do Gênesis. Escolheu o número por razão poético-musical. O segundo capítulo termina no versículo 25.
O poeta do amor “infinito enquanto dure” apresentou o poema no Show do Canecão (1977). Conseguiu da plateia o responso uníssono e unânime “Porque hoje é sábado” enquanto desfiava “Há criancinhas que não comem / Há uma mulher que apanha e cala / Há um piquenique de políticos / Há profunda discordância / Há um grande espírito de porco”. Basta você dar uma espiada no noticiário e, passados 44 anos, não terá dificuldades em atualizar esses versos. Difícil escolher apenas um espírito de porco entre os tantos que medram no cenário nacional.
A lembrança para escrever sobre o patrono da cadeira que ocupo na ASL adveio de leitura do Estadão*. Pelo conteúdo, soube do projeto idealizado pela neta Júlia Moraes e coordenado pelo sobrinho-neto Marcus Moraes. O Acervo Digital Vinícius de Moraes, reúne11 mil documentos. Revela um poeta diferente daquele iconizado pelo copo à mão e estudado desleixo, ao qual nos acostumamos. Havia também um Vinícius centrado, metódico. Refazia os escritos quantas vezes necessário fosse para encontrar a rima perfeita, a sílaba tônica em consonância com a melodia, a perfeita tradução do sentimento a ser expresso. Um arquiteto dos versos e das palavras. Mantinha rotina: trabalhava de manhã e, somente à tarde, recebia amigos para compartilhar prosa e uísque.
Curioso saber que o acervo está guardado no Arquivo-Museu de Literatura Brasileira (AMLB) entidade criada por sugestão de outro gênio da poesia -- Carlos Drummond de Andrade.
(*) Ubiratan Brasil Baú do Poeta Estadão 20/05/2021 pag.H1 e H3
Edgard Steffen ([email protected]) é médico, escritor e membro da Academia Sorocabana de Letras (ASL)