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13 de Novembro de 2020 às 00:01

Sempre que alguém faz uma lista de grandes escritores brasileiros, o nome de Guimarães Rosa aparece com tinta fosforescente. Acho justo. Só acho que fã de Guimarães Rosa pode ser meio chato às vezes. Normalmente o fã chato de Guimarães Rosa parece sempre a postos para tirar pepitas de sabedoria do gogó.

Não que eu esteja, aqui, encrencando somente com o fã de Guimarães Rosa. Todo tipo de fã tende a ser meio chato. Manja aquele cara que defende um político de uma forma constrangedora? Claro que manja. Estamos no meio do furacão.

Mas não quero me alongar em cacarecos políticos. Eu estava falando do fã de Guimarães Rosa. Melhor: eu estava dizendo que fãs, não importam de quem, tendem a ser chatos.

Um exemplo: fãs de Clarice Lispector. Fãs de Clarice Lispector são caçadores implacáveis de epifanias e complexidades do cotidiano. Colocar o bolo pra assar vira turbilhão. Tudo é problema. Tudo é beira do abismo. Culpa da Clarice? Lógico que não. Ela é gigante.

Outro exemplo: fãs da banda “Legião Urbana”. Pra deixar claro: Renato Russo, em vários momentos, é genial. Muitas de suas letras escarafuncham as feridas da tragédia brasileira. Acho “Faroeste caboclo” sensacional. Acho mesmo. Mas tenho um pouco de noção das coisas, e não saio por aí carregando o violão e atormentado ouvidos inocentes. Estou sendo anacrônico? Veja bem: passei a adolescência no fim dos anos 80 e no início dos anos 90. Ou seja, uma parte importante da minha formação se deu em festinhas e chácaras em que a galera cantava teatralmente as paradas do Renato Russo. Vai ver ninguém mais faz parte desse tipo de presepada e eu estou bancando aqui o neurótico de guerra.

Outro exemplo: fãs de Dostoiévski. Eu seria bem cretino se ousasse falar mal do bom e velho Dostô. Pô, acho que aprendi a ler razoavelmente bem. Sei lá. Seus romanções são devastadores. Ele também foi mestre do humor. Fica pra outro momento esmiuçar essa faceta. Eu reconheço, sem miséria, as maravilhas do genial escritor russo. Só que isso não me dá o direito de fazer o papel de sorumbático no barzinho. Ou de aporrinhar o inocente leitor com cenários amargos e penumbrosos.

Outro exemplo: fãs de jazz. Você não ouse pensar que não gosto de jazz. Desnecessário dizer que se trata de um rótulo amplo. O jazz é uma das maravilhas da criação. Ponto. Só que isso não me dá o direito de fazer caras e bocas quando alguém se aventura, por exemplo, no saxofone. Ou não me dá o direito de torcer o nariz para outro tipo de música.

E agora eu vou mostrar os bastidores desta coluna. Tem hora que eu esquematizo tudo. Sou germânico nessas ocasiões. Não foram poucos os textos escritos assim. Mas às vezes as coisas se desviam doidamente. Hoje, por exemplo.

Eu comecei com Guimarães Rosa. Minha ideia era estabelecer uma comparação entre ele e um autor brasileiro contemporâneo que li dia desses. Só que eu me empolguei com essa parada de fãs chatos. Fui no embalo. Eu sempre me empolgo com a chatice.

Bom, matei a vontade. Que nem se arrebentar de comer leite condensado direto da lata. E assim eu posso voltar, ainda que porcamente, ao fito inicial da coluna de hoje. Eu queria dizer que li um romance show de bola, e que ele era uma espécie de “Grande sertão: veredas” urbano. Tudo estava engatilhado de uma maneira que eu alertasse o leitor que Guimarães Rosa não escreveu apenas frases lapidares e comoventes. Eu mostraria que o bicho pega, em termos de violência, em várias de suas histórias. Não rolou. Pode colocar na minha conta.

E assim eu encerro este texto zoneado com a viva recomendação: leia “Os supridores”, romance de José Falero. Muito do Guimarães Rosa está ali, só que em Porto Alegre e com a linguagem das quebradas. Coisa fina.